Pretende-se, com a presente informação, apresentar uma síntese dos principais Acórdãos proferidos pelo Tribunal de Contas – à semelhança do que fazemos em relação às decisões do Centro de Arbitragem Administrativa e, também, do Tribunal de Justiça da União Europeia, descrevendo os factos, a apreciação do Tribunal, a respetiva decisão e analisando, ainda, qual o impacto que a mesma pode ter na determinação das condutas a adotar pela Administração Pública.
Mantêm-se, assim, as nossas informações periódicas, também em matéria de Finanças Públicas, Direito Financeiro e Orçamental e de Contabilidade Pública.
N.º DO ACÓRDÃO: 48/2024
RELATOR: Conselheiro Paulo Nogueira da Costa
DATA: 10 de dezembro de 2024
ASSUNTO: Recurso ordinário relativo a exclusão de responsabilidade de infrações financeiras sancionatórias em razão a formas vinculadas
ENQUADRAMENTO
Em causa no presente processo está a decisão do Tribunal de Contas referente a um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre o Município de Machico e a empresa Tecnovia – Madeira, Sociedade de Empreitadas, S.A., para a "Beneficiação do acesso Piquinho – Torre (Machico)", no valor de € 894.500,00 (sem IVA).
A questão central do acórdão prende-se com a necessidade de revisão prévia do projeto de execução por uma entidade distinta do autor do mesmo, conforme previsto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009, na redação dada pela Lei 40/2015. O Tribunal de Contas entendeu que essa exigência era aplicável ao caso concreto e que a sua violação constituía uma ilegalidade suscetível de alterar o resultado financeiro do contrato, fundamento para a recusa do visto ao abrigo do artigo 44.º, n.º 3, alínea c), da LOPTC.
APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL
O conteúdo da decisão do Tribunal de Contas está centrado na análise de um recurso interposto pelo Município de Machico contra a recusa de visto a um contrato de empreitada de obras públicas, relativo à beneficiação do acesso Piquinho – Torre. O Tribunal examinou detalhadamente a legalidade do procedimento seguido pelo Município, focando-se na necessidade de revisão prévia do projeto de execução por uma entidade distinta do seu autor, conforme estabelecido no artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009, na redação dada pela Lei n.º 40/2015.
Inicialmente, a decisão apresenta um conjunto de factos essenciais para a sua fundamentação. O Município de Machico abriu um concurso público sem publicidade internacional para a realização da empreitada, tendo fixado um preço base de 1.046.910,55 €, com base numa estimativa orçamental elaborada pela empresa Métodos B – Engenharia, Unipessoal, Lda. Posteriormente, o contrato foi adjudicado à empresa Tecnovia – Madeira, Sociedade de Empreitadas, S.A., pelo valor de € 894.500,00 (sem IVA), com um prazo de execução de 450 dias. O contrato teve início apenas após a aprovação formal do Plano de Segurança e Saúde, que ocorreu em 13 de setembro de 2024. O projeto de execução da obra, que integra o caderno de encargos, foi aprovado pela Câmara Municipal de Machico em 2 de maio de 2024. Contudo, algumas partes do projeto, nomeadamente as relativas às instalações elétricas e de telecomunicações, foram concluídas apenas em 4 de maio de 2024, ou seja, após a aprovação do restante projeto. Adicionalmente, verificou-se que o estudo geológico e geotécnico datava de dezembro de 2021. Um dos aspetos críticos destacados pelo Tribunal foi a ausência de uma revisão formal do projeto por uma entidade distinta do seu autor, exigência imposta pelo artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009.
No recurso, o Município de Machico sustentou que a obrigação de revisão prévia do projeto não se aplicava ao caso concreto. O seu argumento baseou-se na alegação de que a alteração introduzida pelo artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009, na redação dada pela Lei n.º 40/2015, não revogou tacitamente o artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 149/2012, que determinava que a obrigação de revisão do projeto de execução só produziria efeitos a partir da publicação de um diploma regulamentar específico, o que ainda não ocorreu. O Município defendeu que, nos termos do princípio "lex specialis derogat legi generali", o Decreto-Lei n.º 149/2012, por ser uma norma especial e suspensiva, deveria prevalecer sobre a Lei n.º 40/2015, que tem caráter mais geral. Além disso, argumentou que, mesmo que a revisão do projeto fosse exigível, a sua ausência não teria impacto financeiro significativo no contrato, afastando assim a fundamentação utilizada para a recusa do visto.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sustentando que a obrigação de revisão do projeto de execução decorre autonomamente do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009, independentemente da regulamentação específica prevista no artigo 43.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos. O Ministério Público sublinhou que esta exigência tem como objetivo garantir maior rigor técnico e financeiro na execução dos contratos de empreitada de obras públicas, prevenindo erros, omissões e custos adicionais que possam surgir devido a deficiências nos projetos iniciais. Por essa razão, a falta de revisão do projeto deveria ser considerada uma ilegalidade suscetível de alterar o resultado financeiro do contrato, fundamento para a recusa do visto nos termos do artigo 44.º, n.º 3, alínea c), da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC).
A decisão do Tribunal debruçou-se também sobre a evolução legislativa desta matéria. Inicialmente, o artigo 43.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos determinava que a revisão do projeto só era obrigatória quando a obra envolvesse complexidade relevante ou utilizasse métodos inovadores. No entanto, essa norma foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 149/2012, passando a exigir a revisão para todas as obras classificadas na categoria III ou superior, ou com preço base enquadrável na classe 3 de alvará ou superior. Contudo, essa obrigação ficou suspensa pelo artigo 5.º, n.º 3, desse mesmo diploma, que determinava que a alteração apenas produziria efeitos após a publicação de um regime específico para a revisão do projeto, o que nunca aconteceu.
Em 2015, a Lei n.º 40/2015 introduziu uma nova redação ao artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009, impondo autonomamente a obrigação de revisão do projeto de execução para empreitadas públicas dentro dos mesmos parâmetros definidos anteriormente no Código dos Contratos Públicos. Esta alteração legislativa gerou dúvidas interpretativas, pois criou uma norma paralela ao artigo 43.º, n.º 2, do CCP, que estava formalmente suspenso. O Tribunal de Contas analisou esta questão e concluiu que a obrigação imposta pela Lei n.º 31/2009, na redação da Lei n.º 40/2015, deve ser aplicada independentemente da suspensão do artigo 43.º, n.º 2, do Código dos Contratos Públicos. Assim, a exigência de revisão do projeto não depende da regulamentação prevista no Decreto-Lei n.º 149/2012 e deve ser cumprida de forma autónoma.
O Tribunal destacou ainda a relevância da revisão do projeto de execução na prevenção de erros e omissões que possam levar a aumentos de custos durante a execução dos contratos. Estudos realizados pelo próprio Tribunal de Contas em auditorias anteriores demonstram que cerca de 50% dos trabalhos adicionais em empreitadas públicas decorrem de falhas nos projetos iniciais. A revisão prévia por uma entidade independente do autor do projeto visa justamente evitar esses custos imprevistos, garantindo um maior rigor na execução das obras públicas.
Apesar de reconhecer a existência de uma ilegalidade devido à falta de revisão do projeto, o Tribunal ponderou que não existiam provas concretas de que essa omissão resultaria, neste caso específico, num impacto financeiro significativo.
Além disso, considerou que a ausência de regulamentação clara nesta matéria, aliada à ausência de censuras anteriores ao Município de Machico sobre a mesma questão, tornava o caso menos grave. O Tribunal também destacou que, ao longo dos últimos anos, tem feito diversas recomendações ao Governo e à Assembleia da República para que seja estabelecido um regime jurídico específico para a revisão de projetos, de modo a eliminar a incerteza legislativa que tem causado dificuldades na sua aplicação.
Assim, a decisão evidencia que, embora a falta de revisão do projeto seja juridicamente relevante e possa ter implicações financeiras, o contexto específico do caso e a falta de regulamentação clara justificam uma abordagem que tenha em conta o princípio da proporcionalidade. O Tribunal analisou ainda a questão sob a perspetiva do artigo 44.º, n.º 4, da LOPTC, que permite a concessão do visto com recomendações quando a ilegalidade detetada não for de gravidade suficiente para justificar a recusa do visto.
O Tribunal verificou que o projeto de execução não foi objeto de revisão por uma entidade distinta do autor do mesmo, o que deu origem à recusa do visto pelo Tribunal de Contas.
DECISÃO
Decide, assim, o Tribunal julgar procedente o recurso posto que “(…) considera-se que a ilegalidade verificada, apesar de se enquadrar no disposto no artigo 44.º, n.º 3, alínea c), da LOPTC, não reveste gravidade bastante para justificar mais do que uma recomendação, ao abrigo do artigo 44.º, n.º 4, da LOPTC.”.
IMPLICAÇÕES PRÁTICAS
As implicações práticas e jurídicas desta decisão judicial são significativas tanto para a gestão de contratos de empreitadas de obras públicas quanto para a interpretação do regime jurídico aplicável à revisão de projetos. Do ponto de vista prático, a decisão reforça a necessidade de os municípios e outras entidades adjudicantes garantirem a revisão prévia dos projetos de execução por entidades independentes, de forma a minimizar riscos financeiros e técnicos associados a erros e omissões nos projetos. Esta obrigação, embora questionada pelo Município de Machico, foi confirmada pelo Tribunal de Contas como uma exigência autónoma da Lei n.º 31/2009, independentemente da regulamentação ainda pendente no Código dos Contratos Públicos. Juridicamente, a decisão reafirma a aplicabilidade imediata do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 31/2009, na redação da Lei n.º 40/2015, afastando a tese de que a suspensão prevista no artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 149/2012 impediria a sua exigibilidade. Além disso, a aplicação do princípio da proporcionalidade demonstra uma abordagem equilibrada do Tribunal de Contas, ao reconhecer que, apesar da ilegalidade detetada, a inexistência de regulamentação clara e de antecedentes de incumprimento justifica uma solução mitigada, permitindo a execução do contrato com recomendações em vez da sua anulação. Esta decisão pode, portanto, servir de referência para futuras deliberações, consolidando a obrigação de revisão dos projetos e incentivando uma intervenção legislativa para clarificar definitivamente o regime aplicável.
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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
José Pedro Barros
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Bárbara Malheiro Ferreira
Maria Antónia Silva
Marta Arnaut Pombeiro
Raquel Tomé Castelo