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Súmula de Jurisprudência do Tribunal de Contas (1º Trimestre de 2023)

14 Junho 2023
Súmula de Jurisprudência do Tribunal de Contas (1º Trimestre de 2023)
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Súmula de Jurisprudência do Tribunal de Contas (1º Trimestre de 2023)

14 Junho 2023

SUMÁRIO

Pretende-se, com a presente informação, apresentar uma síntese dos principais Acórdãos proferidos pelo Tribunal de Contas – à semelhança do que fazemos em relação às decisões do Centro de Arbitragem Administrativa e, também, do Tribunal de Justiça da União Europeia – descrevendo os factos, a apreciação do Tribunal, a respetiva decisão e analisando, ainda, qual o impacto que a mesma pode ter na determinação das condutas a adotar pela Administração Pública.

Mantêm-se, assim, as nossas Informações periódicas, também em matéria de Finanças Públicas, Direito Financeiro e Orçamental e de Contabilidade Pública.

1.
N.º DO ACÓRDÃO: 2/2023
RELATOR: Conselheiro Miguel Pestana de Vasconcelos
DATA: 17 de janeiro de 2023
ASSUNTO: Recusa de visto ao contrato de fiscalização prévia

ENQUADRAMENTO

Em causa no presente processo está a decisão de recusa de visto ao contrato de empreitada celebrado, em 18 de maio de 2022, entre o Município de São Vicente e a empresa “AFAVIAS – Engenharia e Construções, S.A.”.

O contrato de empreitada em apreço teve como objeto a “(…) reparação de pavimentos betuminosos em vários arruamentos municipais do Concelho de São Vicente”.

Tal contrato foi antecedido de concurso limitado por prévia qualificação, o qual teve como critério de adjudicação preço mais baixo, sendo o critério de desempate o “preço mais baixo em diferentes pontos do mapa de quantidades.

No âmbito do concurso foram apresentadas três candidaturas: (1) AFAVIAS – Engenharia e Construções, S.A.; (2) RIM – Engenharia e Construções, S.A. e (4) o agrupamento constituído pelas firmas TECNOVIA – Madeira, Sociedade de Empreitadas, S.A., FARROBO – Sociedade de Construções, S.A. e TECONVIA – Sociedade de Empreitadas S.A..

Porém só a proposta apresentada pela empresa AFAVIAS – Engenharia e Construções, S.A. foi aceite.

No entender do júri a exclusão da “RIM – Engenharia e Construções, S.A.” teve como fundamento a falta de apresentação de todos os documentos de qualificação exigidos no programa do procedimento e o não preenchimento dos requisitos mínimos de capacidade financeira, designadamente, o requisito da autonomia financeira média referente aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, que deveria ser igual ou superior a 60%, e no caso ficou nos 29,86%, o da liquidez geral média referente aos mesmos exercícios, que deveria ser igual ou superior a 4,0 que se ficou nos 1,6 e o da solvabilidade geral positiva, que deveria ser igual ou superior a 200%, à data de 31 de dezembro de 2020, e apenas se verificou 63,04%.

Quanto ao agrupamento constituído pelas empresas TECNOVIA – Madeira, Sociedade de Empreitadas, S.A., FARROBO – Sociedade de Construções, S.A. e TECONVIA – Sociedade de Empreitadas S.A., o júri entendeu ser de excluir, também, uma vez que o agrupamento não apresentou todos os documentos de qualificação elencados no programa de concurso limitado e, também, não cumpriu com os requisitos mínimos de capacidade financeira, designadamente, o requisito da autonomia financeira média referente aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, o qual ficou pelos 56,07%, 8,70% e 69,02%, o da liquidez geral média referente aos mesmos exercícios, o qual se ficou nos 2,09, 1,33 e 2,90 e o da solvabilidade geral positiva que, à data de 31 de dezembro de 2020, indicou ter 117,49%, 5,79% e 204,71%.

Perante tais exclusões, o agrupamento constituído pelas firmas TECNOVIA – Madeira, Sociedade de Empreitadas, S.A., FARROBO – Sociedade de Construções, S.A. e TECONVIA – Sociedade de Empreitadas S.A. foi, em sede de audiência dos interessados, requerer a admissão da candidatura apresentada, uma vez que requisitos mínimos de capacidade técnica e financeira colidiam com o princípio da proporcionalidade face ao objeto do contrato a celebrar. Contudo, o júri deliberou manter as suas propostas de exclusão.

Face ao desacordo com os fundamentos que originaram a exclusão, o agrupamento intentou uma ação de pré-contencioso no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal o qual veio a julgar “a ilegalidade da cláusula 14.ª, n.º 1, als. c), d) e e) do programa do procedimento.”

Todavia, o Município de São Vicente interpôs Recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, o qual ainda não veio a ser proferida decisão.

APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL

 Tendo em consideração a situação fática exposta, o Tribunal centrou a questão decidenda aferir (i) do pedido de alteração da matéria e facto; (ii) da legalidade do cumprimento dos requisitos mínimos de capacidade financeira fixados no programa do concurso; e (iii) a legalidade das cláusulas 14.º, n.º 1 e 33.º do programa do concurso.

Relativamente ao pedido de alteração da matéria de facto, o qual o Município de São Vicente pretende que seja alterado através do aditamento de 12 alíneas, considerou o Tribunal que “para que possa o tribunal apreciar um pedido de alteração da matéria de facto, porém, importa que o recorrente cumpra o ónus que sobre si é imposto (…).”

Relativamente a este ónus do recorrente tem sido entendimento da jurisprudência, designadamente, no Acórdão 3/2018, de 20 de março, do Tribunal de Contas, que “(…) o incumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do n.º 1 desse artigo 640.º, e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento, (…) mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo recorrente, já no âmbito da impugnação de direito.”

In casu, entendeu o Tribunal que “(…) a simples análise da alegação do recorrente se conclui com facilidade não ter este dado cumprimento ao ónus vindo de mencionar. Com efeito, limita-se o recorrente a dizer nas suas conclusões que “Para além dos factos apurados pela SRMTC, deverá este Egrégio Plenário do Tribunal de Contas considerar os seguintes factos relevantes”, mas sem que mencione um único fundamento para essa sua conclusão. Nem no articulado de interposição de recurso, nem nas alegações, o recorrente fundamenta, nem mesmo sinteticamente em que documentos ou peças processuais se escudas para pretender alterar os factos da decisão, assim incumprindo a imposição do art. 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC. (…)”.

Neste sentido, concluiu o Tribunal que relativamente “(…) ao elenco dos factos provados, constante dos pontos a), b), e), f) e g) não integra matéria de facto nova, mas sim a reprodução de peças e documentos já anteriormente juntos aos autos.

Por sua vez, relativamente ao elenco dos factos provados, constantes dos pontos c) e d), concluiu o Tribunal que “(…) não se trata de factos, mas sim de conclusões que retira da análise dos mesmos elementos de que a decisão recorrida lançou mão na análise que fez do caso.”

Em face do exposto, e perante a inalterabilidade da matéria de facto, o Tribunal prosseguiu a sua análise relativamente à matéria de direito, começando, pela análise da legalidade do cumprimento dos requisitos mínimos de capacidade financeira fixados no programa de concurso.

Para o efeito, o Tribunal procedeu a uma análise casuística, referindo, desde logo, que no regime do concurso limitado por prévia qualificação encontram-se regulados os requisitos de capacidade financeira de que os candidatos devem dispor.

Pois considerou o Tribunal que as determinações destes requisitos mínimos de caracter financeiro surgem com vista a assegurar o integral cumprimento das obrigações decorrentes do contrato.

Contudo, a dificuldade na determinação destes requisitos mininos prendem-se com a sua escolha dos requisitos de capacidade financeira e do seu valor, pois, nos casos em que estes valores não sejam adequados podem levar a limitar, ou, no limite, a excluir a concorrência, afastando empresas que não os reúnam.

Neste sentido, e com vista a analisar em concreto as cláusulas do Programa do Concurso, o Tribunal procedeu à distinção entre solvência e liquidez. Definindo solvência como “(…) a capacidade da empresa de satisfazer as suas obrigações à medida que se vencem”. Por outro lado, considerou que “a liquidez está relacionada com os fluxos monetários e com a natureza do ativo e passivo de curto prazo da empresa.”

Por fim, referiu, ainda, que “(…) a autonomia financeira diz respeito à relação entre os capitais próprios e o ativo, permitindo a solidez financeira da sociedade. Os capitais próprios, por sua vez, ou situação líquida da sociedade, são calculados pela diferença entre o ativo e o passivo, resultando do financiamento realizado pelos sócios, como o capital social, as prestações suplementares e acessórios e as reservas. Distingue-se do capital alheio, porque este é dívida. Daqui decorre que a autonomia financeira, uma vez que permite fixar qual o valor do ativo que está a ser financiado com os meios da sociedade, isto é, pelo recurso ao autofinanciamento.”

Voltando ao caso concreto, prevê a cláusula 14.º do Programa de Concurso que:

 “1. Apenas são admitidos os candidatos que cumpram cumulativamente os seguintes requisitos mínimos de capacidade financeira. No caso dos candidatos se apresentarem em consórcio, todos os membros do mesmo devem cumprir individualmente com os seguintes requisitos mínimos de capacidade financeira: (…)

c) Uma autonomia financeira média (média aritmética), referente aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, igual ou superior a 60%o, conforme forma de cálculo constante no Anexo 6 do presente Programa de Procedimento;
d) Uma liquidez geral média (média aritmética), referente aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, igual ou superior a 4,0 conforme forma de cálculo constante no Anexo 6 do presente Programa de Procedimento;
e) Solvabilidade geral positiva, igual ou superior a 200% à data de 31 de dezembrode2020.
(…)

3. Nos termos e para os efeitos previsto no n.º 3 do artigo 179.º do CCP, considera-se que equivale ao preenchimento dos requisitos mínimos de capacidade financeira supra exigidos, a apresentação de declaração bancária, conforme modelo constante do Anexo VI do CCP (Anexo 7 ao presente PP)”

Relativamente à alínea c) do Programa de Concurso, considerou o Tribunal que o valor de 60% é muito elevado, uma vez que a autonomia financeira diz respeito ao valor do ativo, isto é, pelo recurso ao autofinanciamento e que nada obsta a que uma sociedade possa ser financiada, em parte, por capitais alheios e, por outro lado, porque o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção define como valor adequado entre 30% e os 60%.

Assim, considerou o Tribunal que a recorrente “(…) não demonstrou que em função daquela especifica obra o grau de autonomia financeira teria de ser determinado pelo valor mais elevado.”

De seguida, quanto à alínea d) considerou o Tribunal que “(…) a exigência de a empresa ter uma liquidez de 4 significa que teria que ter em meios líquidos o suficiente para satisfazer quatro vezes o passivo de curto prazo”, pelo que é desproporcional tal requisito e, uma vez mais, o Recorrente não fundamenta em concreto o porquê de tal valor.

Por outro lado, relativamente à alínea e), entendeu o Tribunal que, também, este requisito é desproporcional e não justificado pelo Requerente o porquê de um valor tão excessivo, uma vez que o que se pretende com este requisito é que a empresa tenha durante o prazo de execução do contrato o dobro dos seus ativos necessários para a execução do contrato.

Por fim, relativamente à faculdade de apresentação de uma declaração bancária nos casos em que os concorrentes não preencham os requisitos acima elencados, referiu o Tribunal que tal exigência não é neutral e reverter de carater oneroso para os concorrentes uma vez que a abertura de um crédito até ao valor definido no contrato e pelo período de tempo de duração do contrato acarretava comissões e, eventualmente, a exigência de uma garantia pessoal pelos sócios da sociedade.

Em face do exposto, concluiu o Tribunal que houve violação do princípio da proporcionalidade, da concorrência e da igualdade, seja no âmbito de uma análise isolada ou no âmbito da globalidade (como resulta necessário da própria situação) das referidas disposições.

Por fim, relativamente à segunda questão, designadamente, quanto à legalidade das cláusulas 14.º, n.º 1 e 33.º do Programa de Concurso concluiu o Tribunal que “[n]ão há motivo válido para se se exigir que “todos os membros do mesmo devem cumprir individualmente com os (…) requisitos mínimos de capacidade financeira.”. A exigência é desproporcional e, nessa medida ilegal.”

Ora, o Programa de Concurso previa que “[n]o caso dos candidatos se apresentarem em consórcio, todos os membros do mesmo devem cumprir individualmente com os (…) requisitos mínimos de capacidade financeira” (n.º 1 da cláusula 14.ª) e que, “[n]o caso de o candidato ser um agrupamento, considera-se que preenche os requisitos mínimos de capacidade técnica indicados nas cláusulas 13.ª, desde que o membro ou um dos membros com maior participação o preencha individualmente e que preenche os requisitos mínimos de capacidade financeira previstos na clausula 14.ª quando todos os membros os preencham individualmente” (cláusula 33.ª).”

No entender do Requerente, as entidades adjudicantes gozam de plena discricionariedade, uma vez que a lei não exigia qualquer adequação à natureza das prestações do contrato ou a observância de quaisquer limites, salvo quanto à fixação dos requisitos mínimos de capacidade financeira.

Contudo, considerou o Tribunal que o Recorrente não tinha razão, uma vez que “(…) o programa de procedimento não é um espaço em branco para a entidade adjudicante estabelecer as condições que lhe aprouver.”, ou seja, a sua liberdade contratual, ao contrário do que acontece no âmbito do direito privado, é limitada pela necessidade de conformação com os princípios resultantes, quer do CPA, quer do CCP.

E, portanto, em momento algum o Recorrente demonstrou devidamente em função do tipo de prestações, a sua complexidade, o valor da obra, que o esforço exigido aos cocontratantes fosse efetivamente necessário.

Mais acrescenta que o argumento relativamente às conjunturas económicas e financeiras não é aqui conveniente, dado que é um risco comum da atividade económica pelo que não se justifica a exigência destes requisitos.

DECISÃO

Em face da argumentação exposta, o Tribunal decidiu julgar totalmente improcedente, o presente recurso e pela manutenção da recusa de concessão de visto ao contrato sub judice.

IMPLICAÇÕES PRÁTICAS

Do teor da decisão analisada é possível retirar o entendimento de que as entidades adjudicantes não contém uma liberdade contratual tão abrangente no âmbito dos contratos públicos como no âmbito do direito privado, pelo que será limitada esta liberdade em conformidade com princípios resultantes quer do CPA, quer do CCP. Assim, relativamente ao preenchimento dos requisitos mínimos de capacidade financeira, a entidade adjudicante terá de ter especial atenção na sua fixação, porque valores insuficientemente justificados são passíveis de serem considerados excessivos e com violação dos princípios da proporcionalidade e da concorrência.

2.
N.º DO ACÓRDÃO: 4/2023
RELATOR: Conselheiro Alziro Antunes Cardoso
DATA: 31 de janeiro de 2023
ASSUNTO: Recurso jurisdicional contra a concessão de visto ao contrato de empreitada

ENQUADRAMENTO

O Ministério Público não se conformando com o teor da Decisão proferida no processo de fiscalização prévia, que concedeu o visto ao contrato de empreitada celebrado a 18 de agosto de 2018, entre o Município dos Arcos de Valdevez e “Baltor – Engenharia e Construção, Lda.”, veio interpor recurso jurisdicional.

Em 2022, foi autorizada a abertura de concurso público para celebração do contrato de empreitada respeitante a “Ecoparque do Vez – Requalificação das Margens do Rio”, pelo valor de €1.157.259,12, acrescido de IVA.

No âmbito do concurso público foram apresentadas várias propostas sendo excluída, em sede de relatório preliminar, a proposta da sociedade “Oliveiros Grupo, Lda.”, com fundamento na falta de apresentação de habilitação própria exigida (classe 4, da 4.ª subcategoria, 2.ª categoria) e, em relatório final, a proposta da sociedade “Predilethes – Construções, Lda.”, com base na falta de identificação do subempreiteiro e na falta de alvará demonstrativo da detenção de habilitação exigida.

Em 18 de agosto de 2022, o Município dos Arcos de Valdevez adjudicou o contrato de empreitada à sociedade “Baltor – Engenharia e Construção, Lda.”

O referido contrato, celebrado em 18 de agosto de 2022, entre o Município dos Arcos de Valdevez e a “Baltor – Engenharia e Construção, Lda.”, pelo valor de €1.157.259,13, acrescido de IVA, com o prazo de execução de 365 dias foi objeto de fiscalização, o qual foi proferida Decisão nos termos do qual concedeu visto com recomendação ao contrato de empreitada.

O Ministério Público inconformado com a Decisão de concessão de visto ao contrato de empreitada interpôs recurso jurisdicional junto deste Tribunal.

APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL

Tendo em consideração a situação fática exposta, o Tribunal centrou a questão decidenda aferir (i) da nulidade da decisão recorrida com fundamento em omissão de pronúncia; (ii) da exclusão de concorrentes por falta de demonstração da habilitação própria e de subcontratado; e (iii) da habilitação da empresa adjudicatária e do recurso às habilitações de subcontratados.

Relativamente à primeira questão, referiu o Tribunal que “não se vislumbra que tenha a decisão recorrida deixado de se pronunciar sobre qualquer questão que lhe tenha sido submetida a decisão ou que devesse oficiosamente apreciar.

No entender do Tribunal a nulidade de omissão de pronúncia “(…) ocorre apenas quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões de direito ou factos essenciais que estava obrigado a apreciar na decisão proferida e não quando não faça referência a todo e qualquer facto ou se debruce sobre toda e qualquer questão jurídica que seja levantada pelas partes ao longo do processo.”

Nesse sentido, considerou o Tribunal não existir qualquer vício formal que reconduzisse à nulidade da decisão uma vez que “a decisão recorrida ponderou os elementos constantes dos autos – nomeadamente as decisões proferidas pelo júri do concurso e pela entidade adjudicante – e explanou os motivos pelos quais subscrevia tais decisões, considerando-as conforme à lei.”

No que toca à segunda questão, referiu o Tribunal que o procedimento pré-contratual escolhido pelo Município dos Arcos de Valdevez foi o do concurso público e que tal procedimento carateriza-se por ser unifásico, ou seja, é composto por uma fase de proposta e uma fase de adjudicação.

Contudo, apesar das indubitáveis vantagens, tal procedimento não permitia às entidades adjudicantes exclui propostas à prior por não serem os proponentes titulares das habilitações necessárias, uma vez que tal verificação de tais habilitações era relegada para momento posterior.

Todavia, o legislador europeu, com vista a evitar esta consequência, estatuiu na Diretiva 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, que:

“4. A autoridade adjudicante pode solicitar aos proponentes e candidatos a apresentação da totalidade ou de parte dos documentos comprovativos, a qualquer momento do procedimento, se entender que tal é necessário para assegurar a correta tramitação do procedimento.
Antes da adjudicação do contrato, a autoridade adjudicante deve, exceto no que respeita aos contratos baseados em acordos-quadro, quando esses contratos sejam celebrados nos termos do artigo 33.o, n.o 3, ou n.o 4, alínea a), exigir que o proponente ao qual decidiu adjudicar o contrato apresente os documentos comprovativos atualizados em conformidade com o artigo 60.o e, se for caso disso, com o artigo 62.o. A autoridade adjudicante pode convidar os operadores económicos a complementar ou a explicitar os certificados recebidos em conformidade com os artigos 60.o e 62.o.”.

Assim, com esta disposição as entidades adjudicantes poderiam, desde logo, na fase das propostas, solicitar aos proponentes a apresentação dos documentos de habilitação, evitando assim aguardar pela fase de habilitação para o fazer.

Porém, em 2017, com a revisão ao código dos contratos públicos, o legislador português não introduziu tal possibilidade, continuando em vigor a possibilidade de ser exigido “ao adjudicatário, ainda que tal não conste do convite ou do programa do procedimento, a apresentação de quaisquer documentos comprovativos de titularidade das habilitações legalmente exigidas para a execução das prestações objeto do contrato a celebrar.”

Ou seja, apenas é possível solicitar tais documentos apenas ao adjudicatário, isto e, ao concorrente que já tenha sido escolhido e passado a fase da proposta.

Para autores como Pedro Fernández Sánchez com a aludida separação entre as fases de avaliação de propostas e de habilitação tornou-se ilícita a obrigatoriedade de qualquer concorrente apresentar um documento de habilitação no momento da apresentação da proposta.

Já para autores como Pedro Costa Gonçalves a falta de consagração expressa no CCP, da faculdade prevista pelo legislador europeu não impede que as peças do procedimento prevejam a possibilidade de a entidade adjudicatária exigir aos concorrentes que comprovem as suas habilitações e até prevejam mesmo a exclusão daqueles que não respondam a tal convite, contudo, tal obrigatoriedade tem de constar expressamente nas peças do procedimento, quer a consequência, da sua não apresentação.

Em face do exposto e revertendo ao caso concreto, entendeu o Tribunal, de acordo com a doutrina acima elencada, que “(…) lidas as peças concursais (os pontos referidos na decisão recorrida e os demais daquelas peças) não vemos como possa concluir-se que tenha a entidade adjudicante previsto a obrigatoriedade de apresentação das habilitações juntamente com as propostas.

Mais referiu o Tribunal que mesmo que se aceitasse tal obrigação nas peças concursais, o seu incumprimento não se encontra expressamente previsto.

Assim, não se prevendo, em nenhuma parte do Programa do Concurso, a exclusão da proposta como sanção para a falta de junção pelo concorrente do comprovativo das habilitações, a exclusão das propostas por parte do júri do concurso foi ilegal.

Por fim, em relação à terceira questão, começa por clarificar o conceito de habilitação e emissão de alvará.

O tribunal considerou a habilitação como “o ato administrativo que verifica o cumprimento dos requisitos legais e regulamentares de ingresso na atividade de construção por parte do requerente”, ou seja, que lhe permite celebrar contratos de empreitadas de obras públicas.

Por outro lado, a emissão de um alvará “é precedida pela aferição da capacidade técnica e financeira do empreiteiro para a realização de determinadas obras públicas (em função da classe) por parte do Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P.”

Neste sentido, considerou o Tribunal que a possibilidade de aproveitamento da capacidade de terceiros não pode ser ilimitada, pois de outra forma estar-se-ia a pôr em causa os motivos que levaram à necessidade de demonstração da habilitação do adjudicatário.

Neste sentido, o Tribunal procedeu à citação do Acórdão n.º 26/2020, no qual refere que existe “dois limites legais à subcontratação de empreitadas de obras públicas. Um primeiro limite que podemos designar por limite qualitativo, que proíbe a subcontratação do núcleo central da empreitada traduzido nos trabalhos mais expressivos da mesma, quando a empresa adjudicatária não está habilitada para a execução dos mesmos. É esse limite que encontramos no artigo 8.º da Lei n.º 41/2015, quando se refere que «Sem prejuízo do disposto nos artigos 19.º e 20.º, nos procedimentos de formação de contratos de empreitadas de obras públicas, a empresa de construção responsável pela obra deve ser detentora de habilitação contendo subcategoria em classe que cubra o valor global daquela, respeitante aos trabalhos mais expressivos da mesma, sem prejuízo da exigência de habilitação noutras classes e subcategorias relativas às restantes obras e trabalhos a executar». O que o legislador pretende dizer, a contrário, com a expressão “sem prejuízo do disposto no artigo 20.º”, é que a empresa responsável pela execução da obra poderá subcontratar até mesmo os trabalhos mais expressivos da empreitada (ou parte deles), desde que seja detentora de habilitação para a sua execução”. Existe ainda um segundo limite às subempreitadas – que designamos por quantitativo – e que tem como objetivo garantir que a empresa responsável pela execução da obra assegure, por meios próprios, a realização de, pelo menos, 25% dos trabalhos da empreitada, limite que encontramos plasmado no artigo 383.º, n.º 2 do CCP. Quer isto dizer que, ainda que a empresa responsável pela execução da obra esteja legalmente habilitada (com alvará emitido pelo IMPIC) para a realização da totalidade dos trabalhos da empreitada (incluindo todas as categorias e subcategorias de trabalhos necessários na classe exigida), não poderá subcontratar a totalidade desses trabalhos, sob pena de agir como um mero intermediário ou prestador de serviços e não como um verdadeiro empreiteiro, o que poria em causa o princípio do intuitus personae associado à execução de empreitadas de obras públicas. (…)”

Ou seja, o objetivo de tais limites é “(…) essencialmente para evitar que qualquer empresa sem a mínima especialidade e capacitação técnica se apresente à contratação pública, apresentando apenas uma mera delegação nos créditos de habilitação alheios, nomeadamente num alvará com habilitação na classe respetiva.

No caso em apreço, considerou o Tribunal que apesar de nas peças concursais se prever logo ab initio a possibilidade de recurso a terceiros e às habilitações destes é irrelevante, uma vez que o objetivo é de evitar que se adjudiquem empreitadas de obras públicas a empresas não detentoras de habilitação para os trabalhos mais expressivos, pelo que tal só é alcançado através da exigência de tal habilitação à adjudicatária.

Concluindo, assim, o Tribunal que não sendo a adjudicatária titular de alvará de empreiteiros de obras públicas contendo autorização em classe que cobrisse o valor global da obra a adjudicação seria caduca.

 DECISÃO

Em face da argumentação exposta, o Tribunal de Contas decidiu julgar procedente o recurso, determinando, em consequência, a revogação da decisão proferida no âmbito da fiscalização prévia e, bem assim, recusar o visto ao contrato de empreitada respeitante a “Ecoparque do Vez – Requalificação das Margens do Rio” celebrado, em 18 de agosto de 2022, entre o Município dos Arcos de Valdevez e “Baltor – Engenharia e Construção, Lda.”, pelo valor de €1.157.259,13 acrescido de IVA.

IMPLICAÇÕES PRÁTICAS

Do teor da decisão analisada é possível retirar o entendimento de que a junção dos documentos de habilitação apenas pode ocorrer na fase de habilitação, contudo, caso a entidade adjudicante preveja a sua obrigatoriedade na fase de proposta, a mesma deve incluir expressamente a consequência da não junção, caso contrário os concorrentes não poderão ser excluídos na fase das propostas por falta de documentos de habilitação.

Por outro lado, as peças concursais podem prever a possibilidade de recurso a terceiros e as habilitações destes, logo na fase das propostas, contudo tal é irrelevante, uma vez que a entidade adjudicatária terá de ser detentora de habilitação para os trabalhos mais expressivos do contrato de empreitada.

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Lisboa, 14 de junho de 2023

Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
João Mário Costa
Rita Sousa
Carolina Mendes
Álvaro Pinto Marques
Patrícia da Conceição Duarte
Mariana Baptista de Freitas
Inês Braga Reigoto

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