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A tributação dos contratos de cash pooling em Portugal

10 Dezembro 2024
A tributação dos contratos de cash pooling em Portugal
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A tributação dos contratos de cash pooling em Portugal

10 Dezembro 2024

O Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que é contrário ao Direito da União Europeia a legislação portuguesa, em vigor até 2021,“(…) segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado-Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado-Membro”.

Que espaço resta para a tributação dos contratos de cash pooling em Portugal?

DO ENQUADRAMENTO FACTUAL E PROBLEMÁTICA

Em Portugal, a tributação dos contratos de gestão centralizada de tesouraria (vulgo, contratos de cash pooling) tem sido vindo a evoluir, paulatinamente, no sentido da sua extinção.

De facto, embora já se encontrasse prevista a possibilidade de aplicar aos referidos contratos as isenções de Imposto do Selo vocacionadas para financiamentos de curto prazo, havia sempre que cumprir o critério da “cobertura de carências de tesouraria”, que tanta tinta fez correr nos Tribunais (cfr. artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto do Selo).

Com a Lei do Orçamento do Estado para 2020, passou a estar expressamente prevista uma isenção de Imposto do Selo para os empréstimos concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo (cfr. artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo).

No entanto, o Código do Imposto do Selo dispunha de uma norma restritiva que excluía a aplicação da referida isenção (cfr. artigo 7.º, n.º 2 do Código do Imposto do Selo), nomeadamente, nos casos em que o devedor da operação de crédito era não residente em Portugal. Deste modo, num contrato entre um residente em Portugal e um residente noutro estado membro da União Europeia, pela conjugação daquelas duas normas, resultava que as utilizações de crédito pela entidade portuguesa estariam isentas de Imposto do Selo, mas as utilizações de crédito pela entidade residente noutro estado membro da UE já não!

DA EVOLUÇÃO SUBSEQUENTE

A querela não é nova na Doutrina e Jurisprudência Portuguesas, e separava aqueles que defendiam a ilegalidade desta parte da norma do artigo 7.º n.º 2 do Código do Imposto do Selo, na parte em que restringia, injustificadamente, a liberdade de movimentos de capitais, prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (uma maioria), e os que entendiam que não (uma minoria).

Parecendo pôr fim à querela, a Lei do Orçamento do Estado para 2022 alterou a redação da norma, no sentido de incluir no âmbito da isenção de Imposto do Selo “situações em que o credor ou o devedor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal” (vide artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo).

DA ANÁLISE AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA PROFERIDO NO ÂMBITO DO PROCESSO N.º C-420/23, DE 20 DE JUNHO DE 2024

Agora, concluiu o Tribunal de Justiça da União Europeia, no âmbito do processo n.º C-420/23, de 20 de junho de 2024, que o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia se opõe a uma legislação, como a legislação portuguesa em vigor até 2021, “(…) segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado-Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado-Membro.”

Este Acórdão teve na sua génese o pedido de reenvio prejudicial relacionado com a interpretação dos artigos 18.º, 63.º e 65.º, n.º 3 todos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no âmbito de um litígio entre a Faurecia — Assentos de Automóvel, Lda. (doravante Faurecia PT) e a Autoridade Tributária e Aduaneira, relativo à aplicação em Imposto do Selo de operações de tesouraria de curto prazo, em relação ao ano 2000.

Em causa estava o facto de, em 2000, a Faurecia PT, sociedade residente fiscal em Portugal, se encontrar subordinada a um contrato de gestão centralizada de tesouraria, envolvendo a transferência de excedentes de tesouraria entre entidades do grupo, assim como sendo parte num contrato de mútuo, com um crédito rotativo de um ano, celebrado com a Faurecia Investments (não residente em Portugal, sedeada em França).

No âmbito de procedimento inspetivo instaurado à Faurecia PT, a Administração Tributária concluiu que as operações de crédito concedido pela Faurecia PT (mutuante) à Faurecia Investments (mutuária) estavam sujeitas a Imposto do Selo, por se encontrarem excluídas da isenção, pela parte final do número 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, propondo correções nesse âmbito, que deram origem a liquidações de Imposto do Selo sobre tais créditos.

Inconformada, a Faurecia PT contestou este entendimento, invocando como fundamento a violação dos princípios da não discriminação e da livre circulação de capitais, consagrados nos artigos 18.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, chegando até às últimas instâncias.

Nesse âmbito, a Faurecia PT formulou ao Supremo Tribunal Administrativo a seguinte questão prejudicial: “A norma constante do artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo, segundo a qual a isenção de Imposto de Selo prevista para as operações de tesouraria de curto prazo é aplicável quando nestas intervêm duas entidades residentes em Portugal ou quando o mutuário é aqui residente (sendo o credor residente na União Europeia) mas já não é aplicável quando o mutuário (devedor) é residente num Estado-Membro da União Europeia e o mutuante (credor) é residente em Portugal, é conforme aos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecidos nos artigos 18.º, 63.º e 65.º, n.º 3, do TFUE?”

Recordamos que o referido artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia proíbe restrições aos movimentos de capitais entre Estados Membros da União Europeia, incluindo diferenças de tratamento fiscal que desincentivem investimentos transfronteiriços.

Chamado a pronunciar-se, o Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu que a legislação portuguesa em apreço estabelece uma diferença de tratamento baseada na residência do mutuário, restringindo a aplicação da isenção do Imposto do Selo às operações de tesouraria de curto prazo quando envolvam duas entidades estabelecidas em Portugal ou quando o mutuário esteja estabelecido nesse Estado Membro, tendo concluído que esta diferença é considerada uma restrição à livre circulação de capitais que “(…) não parece assentar (…) numa diferença de situações objetiva).

CONCLUSÕES

Em face do exposto, no atual quadro – verificando-se os requisitos para aplicação da isenção –, fica bastante reduzida a tributação dos contratos de cash pooling em Portugal, limitada aos casos em que o credor (mutante) é não residente de país terceiro com o qual não vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital.

Adicionalmente, parece-nos que este Acórdão vem abrir portas à possibilidade de recuperação do Imposto do Selo referente ao período até 2021 pago por mutuários não residentes da União Europeia, designadamente através de apresentação de Pedido de Revisão Oficiosa de Ato Tributário.

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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
José Pedro Barros
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Bárbara Malheiro Ferreira
Alice Ferraz de Andrade
Maria Antónia Silva
Marta Arnaut Pombeiro
Raquel Tomé Castelo

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