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A nova contribuição de solidariedade temporária obrigatória (windfall profit tax)

19 Outubro 2022
A nova contribuição de solidariedade temporária obrigatória (windfall profit tax)
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A nova contribuição de solidariedade temporária obrigatória (windfall profit tax)

19 Outubro 2022

INTRODUÇÃO

1.
Em Portugal, há já algum tempo, e por toda a Europa também, está na ordem do dia a introdução de novos impostos sobre lucros ditos “extraordinários” ou “inesperados” das empresas, comumente chamados de Windfall (profit) Taxes (em tradução livre: “impostos caídos do céu”).
O que são, concretamente?
O que estabelece o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho de 6 de outubro de 2022?
O que é a contribuição de solidariedade temporária obrigatória?
Como estão a pensar e a agir os outros países da Europa?
E Portugal?

AS CAUSAS

2.
Depois dos efeitos provocados pela COVID19 no mercado mundial, a guerra na Ucrânia, pelo impacto que tem em vários setores de mercado, nomeadamente o petrolífero e o energético, contribuiu, decisivamente, para uma inflação mundial com reflexo generalizado na subida dos preços dos bens de consumo e da energia (gás e petróleo).

Em ambos os casos, a situação global terá permitido a diversas empresas, de alguns setores, a obtenção de lucros inesperadamente altos, especialmente, mas não só, onde estes resultam mais diretamente do aumento nos preços da energia e da alimentação.

Simultaneamente, a subida dos preços tem, naturalmente, suscitado dificuldades acrescidas às famílias e às empresas.

Assim, e com o alegado propósito do financiamento das políticas anti-inflacionistas e da mitigação dos efeitos da inflação nas famílias e nas empresas, está a ser considerada a introdução de novos impostos sobre os ditos lucros extraordinários ou inesperados, especialmente direcionados para os setores económicos onde esses lucros sejam mais evidentes e acentuados.

Inicialmente, foram apontados como sujeitos deste tipo de impostos os incluídos nos setores petrolífero e energético, mas, entretanto, também banca, distribuição e outros setores começaram a ser falados.

A POSIÇÃO DA COMISSÃO EUROPEIA

3.
No início de março de 2022, a Comissão Europeia emitiu uma Comunicação [COM (2022) 108 final] e pronunciou-se, no sentido de que poderiam ser adotadas pelos Estados-Membros medidas em matéria de auxílios estatais a fim de possibilitar o apoio às empresas e aos setores gravemente afetados pela evolução geopolítica. E, para financiar essas medidas de emergência, a Comissão Europeia antecipou que os Estados-Membros poderiam ponderar a adoção de medidas fiscais temporárias sobre lucros inesperados.

Concretamente, a Comissão Europeia indicou que os Estados-Membros poderiam, a título excecional, vir a aprovar medidas fiscais que visem captar algumas receitas de certos produtores de eletricidade, tendo em vista a sua redistribuição pelos consumidores finais de eletricidade.

Dentro destas indicações, a Comissão esclareceu, ainda, que essas medidas não deveriam ser retroativas e serviriam apenas para recuperar uma parte dos lucros (extraordinários) efetivamente realizados. E indicou, também, que a duração das medidas deveria ser limitada e associada a uma situação de crise específica.

Dentro deste contexto, vários países europeus implementaram, ou virão a implementar, Windfall Profit Taxes, adotando modelos distintos e abrangendo diversos setores de atividade, para lá do energético.

A ITÁLIA

4.
A Itália introduziu, já, um imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados, em março de 2022, tributando, atualmente, tais ganhos a uma taxa de 25% e que deve ser paga em 30 de junho e em 30 de novembro de 2022.

Fundamentalmente, são considerados lucros extraordinários ou inesperados os que resultem, no período entre 1 de outubro de 2021 e 30 abril de 2022, de um aumento das margens de lucro acima de 10% e superior a 5 milhões de euros, por comparação com o período entre 1 de outubro de 2020 e 30 de abril de 2022.

Este imposto recai sobre os setores da produção, venda e revenda de eletricidade, gás metano, gás natural e produtos petrolíferos.

A ESPANHA

5.
Foi em Espanha, e logo em setembro de 2021, imposto aos fornecedores de energia o pagamento ao sistema elétrico espanhol um montante proporcional ao aumento dos ganhos obtidos como resultado da incorporação do preço do gás natural nos preços da eletricidade.

Espanha propôs, entretanto, introduzir um novo imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados correspondente a 1,2% dos lucros das companhias do setor energético com uma faturação acima de mil milhões de euros, tendo por referência o ano de 2019. De igual forma, propôs-se aplicar uma taxa especial de 4,8% sobre as margens e comissões das entidades financeiras.

Em ambos os casos, foi expressamente prevista a proibição de repercussão do imposto aos consumidores, sob pena de poder ser aplicada uma sanção correspondente a 150% do montante repercutido.

O imposto recai sobre os anos de 2022 e de 2023 e deverá ser pago em setembro do ano seguinte, com um adiantamento de 50% em fevereiro do mesmo ano.

O REINO UNIDO

6.
O Reino Unido optou, para já, por aplicar o imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados, apenas, ao sector de extração de petróleo e de gás, mas antecipa-se um alargamento ao setor energético.

Este imposto corresponde a uma taxa de 25% sobre os lucros destas empresas que acresce à taxa geral de 40%, já, aplicável.

Os lucros das empresas deste setor têm, porém, um regime de apuramento dos lucros específico e está prevista a possibilidade de dedução de até 91,25% do imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados em função do reinvestimento dos lucros no setor de petróleo e gás do Reino Unido.

Tal imposto, especial, deverá manter-se em vigor até que o Governo britânico considere que os preços do petróleo e gás voltaram a níveis historicamente normais, mas expirará em dezembro de 2025.

A HUNGRIA

7.
A Hungria aplica já impostos sobre os lucros extraordinários ou inesperados a diversos setores de atividade, incluindo a banca e a energia, mas, também, às telecomunicações, ao retalho e às companhias aéreas, prevendo regimes diferentes para cada setor.

Designadamente, o sector bancário deverá pagar uma taxa extraordinária sobre os resultados de 10%, em 2022, e de 8%, em 2023.

As telecomunicações e o retalho vêm, assim, aplicadas taxas especiais progressivas, de até 7% e 4,1%, respetivamente, em função dos resultados acima de um milhão de florins. E as companhias aéreas deverão pagar uma taxa por cada passageiro.

A GRÉCIA

8.
A Grécia introduziu, em maio de 2022, um imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados, para já aplicável, apenas, às empresas produtoras de eletricidade.

Neste caso, os lucros considerados excessivos são apurados por referência ao preço do MWh e a taxa aplicável é de 90%.

A ROMÉNIA

9.
A Roménia aplica, para já, o imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados também, apenas, ao setor energético.

O imposto consiste numa taxa de 80% aplicável aos lucros considerados excessivos, também, por referência ao preço do MWh.

Previsivelmente, este imposto será temporário e deverá manter-se em vigor até 31 de março de 2023.

OUTROS PAÍSES EUROPEUS

10.
Alemanha, França, Áustria, Irlanda e Bélgica não avançaram, ainda, com tais impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados. A Alemanha e a França parecem, aliás, ser os países onde estes impostos conhecem menos adesão por parte dos governos em funções, não existindo propostas concretas para a sua criação.

Por seu lado, a Áustria, a Irlanda e a Bélgica estudam, também, a implementação desses impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados para empresas do setor energético, em termos semelhantes aos que estão em vigor noutros países.

O NOVO REGULAMENTO (UE) 2022/1854 DO CONSELHO, DE 6 DE OUTUBRO DE 2022

(i) âmbito e natureza

11.
A Comissão Europeia anunciou, porém,  em setembro de 2022, a apresentação de uma proposta de criação de uma nova contribuição solidária temporária, de 33%, sobre os lucros das empresas do setor de energia que, em 2022, tenham registado ganhos que ficaram 20% acima da média dos três anos anteriores.

E, agora, em outubro de 2022, foi finalmente aprovado o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022, precisamente relativo a uma intervenção de emergência para fazer face aos elevados preços da energia.

12.
O Regulamento propõe-se fazer face ao aumento acentuado dos preços da eletricidade e às suas repercussões nas famílias e na indústria, adiantando que, se forem adotadas medidas nacionais descoordenadas, estas poderão afetar o funcionamento do mercado interno da energia, pondo em perigo a segurança do aprovisionamento e conduzindo a novos aumentos de preços nos Estados-Membros mais afetados pela crise.

Pressuposto deste Regulamento é, também, que a solidariedade entre Estados-Membros, mediante a adoção de um limite máximo para as receitas de mercado a nível da União, gerará receitas que permitirão aos Estados-Membros financiar medidas de apoio aos clientes finais de eletricidade, como as famílias, as pequenas e médias empresas (PME) e em outros setores com utilização intensiva de energia, preservando, ao mesmo tempo, os preços nos mercados da União e o comércio transfronteiras.

O citado Regulamento visa, assim, (i) reduzir o consumo de eletricidade, (ii) introduzir um limite máximo para as receitas de mercado de determinados produtores, (iii) habilitar os Estados-Membros a aplicarem medidas de intervenção pública de fixação de preços relativamente ao fornecimento de eletricidade e (iv) estabelecer regras com vista a uma contribuição obrigatória de solidariedade temporária.

Neste âmbito, o Regulamento (UE) 2022/1854 procede à introdução de uma nova “contribuição solidária” que é aplicável às empresas e estabelecimentos permanentes da União com atividades nos seguintes setores:

  • petróleo bruto;
  • gás natural;
  • carvão; e
  • refinação.

(ii) redução do consumo bruto de eletricidade

13.
O Regulamento em causa estabelece, assim, a redução do consumo bruto mensal total de eletricidade em 10 % em comparação com a média do consumo bruto de eletricidade no período compreendido entre 1 de novembro e 31 de março dos cinco anos consecutivos anteriores. E esta redução do consumo bruto de eletricidade durante as horas de ponta não pode ser inferior a 5%, por hora e em média.

(iii) limite máximo para as receitas de mercado

14
O Regulamento (UE) 2022/1854 estabelece também um limite máximo para as receitas de mercado obtidas com a venda de eletricidade produzida a partir das seguintes fontes:

  • energia eólica;
  • energia solar (térmica e fotovoltaica);
  • energia geotérmica;
  • energia hidroelétrica sem reservatório;
  • combustíveis biomássicos (sólidos ou gasosos), excluindo o biometano;
  • resíduos;
  • energia nuclear;
  • lenhite;
  • produtos à base de petróleo bruto; e
  • turfa.

As receitas de mercado obtidas por estes produtores devem ser limitadas a 180 EUR, no máximo, por MWh de eletricidade produzida.

(iv) outras medidas (nacionais) de resposta à crise

15.
O Regulamento (UE) 2022/1854 prevê também a possibilidade de os Estados-Membros adotarem medidas adicionais, designadamente, manter ou introduzir medidas que limitem ainda mais as receitas dos produtores, incluindo a possibilidade de diferenciar entre tecnologias, bem como as receitas de mercado de outros participantes no mercado, incluindo os que operam no comércio de eletricidade, a partir das indicadas fontes ou de outras.

E permite, paralelamente, que estas medidas adicionais recaiam sobre outras unidades de energia hidroelétrica, nomeadamente de barragem, sujeitando-as a um limite máximo para as receitas de mercado, ou manter ou introduzir medidas que limitem ainda mais as suas receitas de mercado, incluindo a possibilidade de diferenciar entre tecnologias.

Estas medidas adicionais ficam, porém, subordinadas aos seguintes princípios:

  • devem ser proporcionadas e não discriminatórias;
  • não podem comprometem os sinais de investimento;
  • devem assegurar que os custos de investimento e de exploração sejam cobertos;
  • não podem distorcer o funcionamento dos mercados grossistas de eletricidade e, em especial, não podem afetar a ordem de mérito nem a formação dos preços no mercado grossista; e
  • devem ser compatíveis com o direito da União.

(v) medidas aplicáveis ao mercado retalhista

16.
O Regulamento (UE) 2022/1854 prevê, ainda, por outro lado, a possibilidade de extensão temporária das medidas de intervenção pública de fixação dos preços da eletricidade às PME, bem como a possibilidade de os Estados-Membros fixarem, a título excecional e temporário, um preço de fornecimento da eletricidade abaixo do custo, desde que estejam preenchidas todas as seguintes condições:

  • a medida abrange uma quantidade limitada de consumo e mantém um incentivo à redução da procura;
  • não haja discriminação entre fornecedores;
  • os fornecedores sejam compensados pelo fornecimento abaixo do custo; e
  • todos os fornecedores sejam elegíveis para apresentar ofertas ao preço de fornecimento da eletricidade abaixo do custo na mesma base.

(vI) setores do petróleo bruto, gás natural, carvão e refinação

17.
Para os setores do petróleo bruto, do gás natural, do carvão e da refinação o Regulamento (UE) 2022/1854 prevê uma medida especial, centrada numa nova “contribuição de solidariedade temporária obrigatória” e que deve recair sobre os “lucros excedentários” gerados por empresas e estabelecimentos permanentes da União com atividades nos indicados setores.

(vIII) vigência

18.
O Regulamento entrou em vigor no passado dia 7 de outubro de 2022 e é, por natureza, obrigatório e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros até 31 de dezembro de 2023.

No entanto, este regulamente não é exequível por si mesmo, necessitando de ser implementado pelos Estados-Membros.

Além disso, o regulamento prevê datas e períodos de vigência, específicos, para algumas medidas. Assim, ficou expressamente estabelecido que:

  • a redução do consumo bruto de eletricidade durante as horas de ponta é aplicável de 1 de dezembro de 2022 a 31 de março de 2023;
  • as medidas para alcançar a redução da procura e distribuição das receitas excedentárias vigoram a partir de 1 de dezembro de 2022; e
  • o limite máximo para as receitas de mercado aos produtores de eletricidade e outras medidas nacionais de resposta à crise são aplicáveis entre 1 de dezembro de 2022 e 30 de junho de 2023.

A NOVA CONTRIBUIÇÃO DE SOLIDARIEDADE TEMPORÁRIA OBRIGATÓRIA

(i) obrigatoriedade

19.
O Regulamento (UE) 2022/1854 é taxativo ao referir que a contribuição de solidariedade temporária é obrigatória para os Estados-Membros, exceto se os mesmos tiverem já aprovado medidas nacionais equivalentes. Neste caso, os Estados-Membros devem assegurar que tais medidas nacionais equivalentes aprovadas tenham objetivos semelhantes aos da contribuição de solidariedade temporária e que estão sujeitas a regras semelhantes às regras que regem esta contribuição, nos termos do regulamento, e que geram receitas de valor comparável, ou superior, ao valor estimado das receitas provenientes da contribuição de solidariedade.

(iI) incidência subjetiva

20.
Esta contribuição de solidariedade temporária obrigatória é aplicável a empresas e a estabelecimentos permanentes da União, incluindo os que fazem parte de um grupo consolidado exclusivamente para efeitos fiscais, com atividades nos seguintes setores:

  • petróleo bruto;
  • gás natural;
  • carvão; e
  • refinação.

(iii) incidência objetiva

21.
A nova contribuição de solidariedade deve ser calculada sobre os lucros tributáveis, determinados em conformidade com as regras fiscais nacionais, no exercício fiscal de 2022 e/ou no exercício fiscal de 2023 e durante a totalidade dos mesmos, que se situem acima do correspondente a um aumento de 20 % dos lucros tributáveis médios, determinados em conformidade com as regras fiscais nacionais, nos quatro exercícios fiscais com início em ou após 1 de janeiro de 2018.

O Regulamento prevê, ainda, que, se a média dos lucros tributáveis nesses quatro exercícios fiscais for negativa, os lucros tributáveis médios devem ser iguais a zero para efeitos do cálculo da contribuição de solidariedade temporária.

(iv) taxa

22.
A taxa aplicável para o cálculo da contribuição de solidariedade temporária deve ascender a, pelo menos, 33 % da base de cálculo e acresce aos impostos e taxas normais aplicáveis, em conformidade com o direito de cada Estado-Membro.

(v) consignação

23.
O Regulamento (UE) 2022/1854 estabelece, expressamente, que as receitas da contribuição de solidariedade temporária devem ser utilizadas pelos Estados-Membros de forma a produzir efeitos atempadamente para qualquer dos seguintes fins:

  • apoio financeiro aos clientes finais de energia, em especial as famílias vulneráveis, a fim de atenuar os efeitos dos preços elevados da energia, de modo focalizado;apoio financeiro para reduzir o consumo de energia, por exemplo através de leilões ou de regimes de concurso para a redução da procura, reduzindo os custos de aquisição de energia dos clientes finais de energia para determinados volumes de consumo, promovendo investimentos por parte dos clientes finais de energia em energias renováveis, investimentos estruturais em eficiência energética ou outras tecnologias de descarbonização; e
  • apoio financeiro para empresas de setores com utilização intensiva de energia, desde que estejam subordinadas a investimentos em energias renováveis, eficiência energética ou outras tecnologias de descarbonização;
  • apoio financeiro para desenvolver a autonomia energética, em especial investimentos em consonância com as metas do plano REPowerEU, estabelecido no Plano REPowerEU e na Ação Europeia Conjunta REPowerEU, como projetos com uma dimensão transfronteiras.

Num espírito de “solidariedade” entre Estados-Membros, estes podem, ainda, afetar uma parte das receitas da contribuição de solidariedade temporária obrigatória ao financiamento comum de medidas destinadas a reduzir os efeitos prejudiciais da crise energética, incluindo o apoio à proteção do emprego e à requalificação e melhoria das competências da mão de obra, ou a promoção de investimentos na eficiência energética e nas energias renováveis, incluindo no âmbito de projetos transfronteiras e do Mecanismo de financiamento da energia renovável da União previsto no Regulamento (UE) 2018/1999 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à Governação da União da Energia e da Ação Climática.

Salienta-se, aqui, a expressa referência do Regulamento para a produção de efeitos “atempados”, induzindo que as medidas devem ter caráter direto e imediato, e sem dilações temporais.

De igual modo, este Regulamento (UE) 2022/1854 estabelece, também taxativamente, que as medidas devem ser (i) claramente definidas, (ii) transparentes, (iii) proporcionadas, (iv) não discriminatórias e (v) verificáveis.

(vI) entrada em vigor

24.
O Regulamento (UE) 2022/1854, como atrás se disse, entrou já em vigor no dia 7 de outubro de 2022 e é obrigatório e diretamente aplicável, dada a sua natureza, nos Estados-Membros.

Sem prescindir, verifica-se que o regulamento não é exequível por si mesmo. As medidas adotadas pelo Regulamento carecem de implementação por parte dos Estados-Membros, razão pela qual ficou estabelecido que os Estados-Membros devem adotar e publicar as medidas que concretizem a contribuição de solidariedade temporária obrigatória, impreterivelmente, até 31 de dezembro de 2022.

(vIi) a vigência

25.
O Regulamento (UE) 2022/1854 estabelece, igualmente, que a contribuição de solidariedade obrigatória é excecional e estritamente temporária. E, por isto mesmo, ficou expressamente definido que a contribuição de solidariedade deverá aplicar-se, apenas, aos exercícios fiscais de 2022 e/ou 2023.

E PORTUGAL?

26.
O Governo português já anunciou publicamente que Portugal apoiou e participou ativamente nos trabalhos da Comissão Europeia e que vai criar uma contribuição solidária de 33% sobre os lucros das empresas do setor de energia que, em 2022, registaram ganhos que ficaram 20% acima da média dos três anos anteriores.

Com efeito, na apresentação da Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023), o ministro das finanças confirmou, mesmo, que iria introduzir a nova contribuição, seguindo a “decisão a nível europeu” e avançando que terá um “regime próprio” e que a mesma entrará em vigor antes do OE 2023.

A “decisão a nível europeu” a que alude o Governo é respeitante a este Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho de 6 de outubro de 2022 que veio criar a referida contribuição de solidariedade temporária e obrigatória.

Como se já viu, também, o regulamento é obrigatório e diretamente aplicável em Portugal e a contribuição de solidariedade temporária e obrigatória deverá ser implementada, pelo Governo, até 31 de dezembro de 2022.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

27.
Portugal não implementou, ainda, portanto, essa nova contribuição sobre os lucros, extraordinários ou inesperados, mas o Governo prevê a sua existência, não obstante o Primeiro-Ministro ter anteriormente declarado que a situação portuguesa não é comparável à de outros países devido à carga fiscal elevada sobre as empresas.

E, de facto, os principais setores de atividade que estão, agora, noutros países europeus, a ser sujeitos a impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados encontram-se, já, em Portugal submetidos a algumas contribuições financeiras setoriais extraordinárias e há alguns anos, que oneram a normal tributação sobre os lucros em sede de IRC, ainda que com base de incidência diversa.

Neste caso encontra-se, nomeadamente, a contribuição extraordinária sobre o setor energético, desde 2014, ou a contribuição sobre o setor bancário, desde 2011, e o adicional de solidariedade sobre o setor bancário, desde 2020, sendo que a primeira recai, precisamente, sobre um dos setores visados pela nova contribuição de solidariedade temporária obrigatória.

Mas, a estas, acrescem, ainda, em Portugal a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, desde 2015, e, mesmo, o a taxa de segurança alimentar “mais”, desde 2012, aplicável aos titulares de estabelecimentos de comércio alimentar (vg. supermercados), ou a contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do serviço nacional de saúde, desde 2021. E em vias de criação está, ainda, agora de novo, em 2022, a contribuição especial para a conservação dos recursos florestais, sendo que, presentemente, não é possível saber qual a concreta receita gerada por cada uma destas contribuições, já que não se encontram devidamente discriminadas na Lei do Orçamento do Estado, o que viola, frontalmente, normas e princípios constitucionais e de orçamentação das receitas públicas, com consequências que os Tribunais não têm tido a coragem de assumir (neste sentido vide Maria de Oliveira Martins, no Jornal Expresso).

Ora, todas estas “contribuições” acrescem, como referido, à normal tributação sobre os lucros, em sede de IRC, a que as empresas portuguesas que atuam nestes setores estão, também, submetidas, nomeadamente as do setor energético, sujeitas que estão à CESE. E aqui, como se viu, o Regulamento parece não permitir a coexistência de ambas as contribuições, se forem equivalentes nos seus objetivos e gerarem receita de valor comparável ou superior.

O certo é também que, em Portugal, o imposto (“normal”) sobre os lucros, o IRC, neste momento, já incide (mais do que proporcionalmente) sobre lucros “excessivos”, na justa medida em que há a acrescer-lhe uma derrama estadual que implica taxas adicionais (à taxa normal de 21%), de 3%, de 7% e de 9%, consoante o “escalão”, a que acresce, em alguns municípios, a derrama municipal, até 1,5% - o que sobe a taxa global do imposto para (em termos “grosseiros”) 31,5%, a final (tornando-o progressivo).

28.
Masé possível identificar, ainda, alguns outros constrangimentos à concretização deste novo imposto sobre os lucros em Portugal.

Desde logo, haverá que ter presente e acautelar o princípio da igualdade, o que poderá exigir uma justificação, pública e objetiva, para taxar de novo determinadas empresas e não taxar as demais. Aliás, esta questão é especialmente pertinente quando existem outros setores económicos que obtiveram e continuam a obter lucros extraordinários ou inesperados, como sucede, atualmente, com o setor do armamento e da defesa, e como sucedeu (e poderá vir a suceder, de novo, no inverno) com o setor da saúde, especialmente o relativo a produtos de proteção e desinfeção (contra a COVID19).

Ainda assim, esta justificação, pública e objetiva, que se impõe, poderá ser facilitada quando o imposto é temporário e de natureza extraordinária e solidária e quando é introduzido por um Regulamento Europeu.

Mas a verdade é que, em Portugal, como é bem de ver, os impostos extraordinários tendem a perpetuar-se, como sucede precisamente com as outras contribuições financeiras sectoriais, como a CESE, com a qual a nova contribuição de solidariedade se terá, como vimos, necessariamente que compatibilizar.

Haverá, igualmente, que se ter presente a necessidade de harmonização de qualquer nova contribuição temporária com a legislação europeia, nomeadamente a Diretiva Tributação da Energia, o que poderá, também, não ser simples.

Tal como há, ainda, questões de auxílios do Estado, que a própria Comissão Europeia já ressalvou e que devem ser salvaguardadas. Não só porque há empresas que podem sair “beneficiadas” por não estarem sujeitas aos novos tributos, enquanto outras ficarão submetidas à nova contribuição, mas, também, porque os próprios auxílios do Estado podem revelar-se perversos ao transferir empresas “beneficiárias” para o âmbito de aplicação destes novos impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados.

29.
O certo é que a revisão constitucional de 1997, de alguma forma, passou a prever um terceiro género de tributos – as contribuições financeiras sectoriais – e a doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que estes novos tributos não estão sujeitos aos princípios e regras geralmente aplicáveis aos (outros) impostos, mesmo que tenham a natureza de prestações coativas e sejam unilaterais.

Não obstante, já o Professor Sousa Franco ensinava, nas décadas de 50 a 90, que este tipo de contribuições – então chamadas “parafiscais” – podiam ter um regime e natureza distintos dos dos impostos. No entanto, quando tais tributos (parafiscais) assumissem a natureza de verdadeiros impostos e fossem, assim, prestações coativas e unilaterais, estariam sujeitos às mesmas regras – se fossem impostos, às regras dos impostos, se fossem taxas, às regras das taxas (ou no mais que fossem) –, mas sem que admitissem um tertium genus, excluído das garantias constitucionais tipicamente inerentes aos impostos, conquistadas ao longo de décadas.

A nova doutrina e a nova jurisprudência, pós 1997 têm, portanto, libertado o legislador destes constrangimentos. Mas nada garante que assim continuem, especialmente se estivermos perante contribuições que são aplicáveis a sectores que estão, presentemente, já sujeitos a outras contribuições, financeiras e sectoriais, ditas, também, temporárias e excecionais (extraordinárias).

De igual forma, a Constituição não permite a criação de impostos retroativos, como sucede, visivelmente, neste mesmo caso, em alguns outros países europeus (vg. Itália), onde os impostos sobre tais lucros, extraordinários, inesperados, estão a apresentar natureza retroativa.

O certo é que, da análise do Regulamento, identificam-se, também neste campo, dificuldades, já que a contribuição terá por base, também, as margens anteriormente apuradas pelas empresas antes da perspetivada entrada em vigor da contribuição.

Por outro lado, o Tribunal Constitucional vem entendido que «o legislador da revisão constitucional de 1997 (…) apenas pretendeu consagrar a proibição da retroatividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente».

Ora, neste particular, o Tribunal Constitucional tem entendido que quando estão em causa impostos (complexos e) de formação sucessiva (como é o caso do IRC), o facto tributário só se verifica no final do ano, pelo que a aplicação desde 1 de janeiro deste ano - e, portanto, a lucro já auferido -, pode não apresentar, à partida, problemas de retroatividade autêntica ou inautêntica, mas, sim, quando muito, de mera retrospetividade admitida pelo Tribunal Constitucional.

Por último, haverá que definir, muito precisa e objetivamente, em que termos é que se pode considerar tal lucro como “excessivo”, para justificar essa tributação “extraordinária”, o que o regulamento já promove por referência aos anos de 2018 a 2021.

Mas, simultaneamente, poderão ainda suscitar-se questões sobre quais os limites da criação, pelos governos, de impostos e contribuições, mormente sobre determinados setores de atividade, já que, em abstrato, o Estado poderá criar tantos e tão sucessivos tributos que tal poderia resultar numa tributação verdadeiramente confiscatória, sendo que, naturalmente, as empresas também se adaptarão a estas novas conjunturas, adiando os seus lucros e/ou os seus investimentos para depois de 2023.

30.
As soluções a adotar, dado que o regulamento é obrigatório em todos os seus elementos, mas não exequível por si mesmo, podem vir a passar por mais um imposto específico sobre os lucros, ou mesmo por um adicional (sobre a coleta), ou por um adicionamento (sobre a matéria coletável), ou, mesmo, por uma taxa suplementar, no IRC, e, como já sucede em Itália, comparando com períodos de tributação anteriores para determinar tal valor “excessivo”.

Como se viu, porém, suscitam-se, em Portugal, específicas dificuldades, que sempre será preciso acautelar, sob pena de se poder estar perante (mais uma) situação suscetível de aumentar a litigância fiscal e que pode determinar, mesmo, que o Estado venha a ser obrigado, pelos Tribunais, a devolver aos contribuintes o valor ou de impostos já existentes ou da própria contribuição de solidariedade temporária e obrigatória.

31.
Como diz Friedman, a inflação é a única forma de o estado aumentar os impostos sem a intervenção do legislador. E, na verdade, o Estado Português está, também, a obter receita adicional “excessiva” em função da inflação: as mesmas taxas de imposto sobre valores superiores, porque inflacionados, resultam em muito mais receita de imposto.

E tal como se ensina, já, também, em França (Philippe Bullet), os governos deveriam promover a indexação da inflação anual aos impostos, nomeadamente no que respeita às deduções e aos escalões, e quer em sede de IRS, como de IRC, parecendo insuficiente o que, neste aspeto, é previsto na citada Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023).

Por outro lado, de acordo com as declarações do ministro do Ambiente e da Ação Climática, confirmadas na Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023), não está previsto que o Governo altere a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE). Ou seja, ambas as contribuições vigorarão, ao que parece, em simultâneo. O ministro do Ambiente adiantou, mesmo, que "não há substituição de taxas, temos de ver como todos estes dois impostos combinam", remetendo para o Ministério das Finanças.

Neste âmbito, é de salientar, no entanto, que o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho prevê, expressamente que a nova contribuição acresce aos impostos e taxas normais aplicáveis em conformidade com o direito de um Estado-Membro, mas que assim poderá não ser no caso em que, como se viu, os Estados-Membros aplicam, já, contribuições equivalentes.

Resta saber o que, para este efeito, o Governo vai entender que são “impostos e taxas normais”, e se aqui não se enquadram algumas das contribuições financeiras setoriais extraordinárias, como a CESE, já que estas é, alegadamente, extraordinária e temporária (e não “normal”).

32.
O certo é que Portugal deve, agora, e até 31 de dezembro, que fazer aplicar a nova contribuição de solidariedade temporária obrigatória, por força deste Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, e que configurará, inequivocamente, um novo imposto sobre os lucros (ditos “extraordinários” ou “inesperados”) das empresas (Windfall Profit taxes).

O Governo já adiantou que teremos, em Portugal, esta nova Contribuição Temporária de Solidariedade e que a mesma implicará "taxa mínima de 33%", em linha com o disposto no Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho.

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Sob este tema e os seus problemas poderão ver também o podcast anterior da secção de economia do Expresso, Money Money Money em: Expresso | Portugal precisa de windfall taxes?

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Lisboa, 19 de outubro de 2022

Rogério M. Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
Pedro José Santos
João Mário Costa
Rita Lima de Sousa
José Pedro Barros
Carolina Mendes
Patrícia da Conceição Duarte

(Tax litigation team)

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