SUMÁRIO
Com a presente Informação pretende fazer-se um update de diversos desenvolvimentos, ao nível europeu, em matéria de combate à evasão e à fraude fiscais.
INTRODUÇÃO
1.
É reconhecido que a pressão contra a fraude e a evasão fiscal se tem vindo a intensificar, em boa medida fruto de diversos e conhecidos leaks, amplamente divulgados, com materialização em várias manchetes e peças jornalísticas, mensagens políticas e, bem assim, em intensa produção legislativa ao nível nacional e internacional.
Esta produção prolífica de instrumentos jurídicos em matéria de combate à fraude e evasão fiscal é, em grande medida, de aplaudir, sem prejuízo da necessidade de, na melhoria da justiça fiscal, se colocarem igualmente outros pesos na balança, como seja a promoção do aumento da compreensibilidade e da previsibilidade das normas fiscais, e ainda o importante princípio da proporcionalidade.
A presente Informação pretende, assim, ajudar os leitores a acompanhar os desenvolvimentos recentes que julgamos mais relevantes, ao nível europeu, relacionados com essas medidas de combate à fraude e evasão fiscais.
O PROJETO DE RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU N.º 2020/2080 (INI)
2.
No dia 21 de março de 2023, foi aprovado, ao nível do Comité de Orçamento e Finanças do Parlamento Europeu, o texto da iniciativa, ainda pendente de aprovação do Plenário, de Resolução do Parlamento Europeu on lessons learnt from the Pandora Papers and other revelations [2022/2080(INI)] (“Projeto de Resolução”).
Com especial relevo em termos de política fiscal, este Projeto de Resolução menciona o que se projeta designar de “práticas prejudiciais” na área de tributação do rendimento e do património pessoal.
O Projeto de Resolução visa, designadamente, o que identifica como uma “tendência” dos Estados-membros da União Europeia de “adotarem instrumentos e regimes jurídicos desenhados para promover a atração de pensionistas estrangeiros e de trabalhadores altamente qualificados para investir ou viver nos seus territórios, concedendo-lhes, nomeadamente, benefícios e isenções fiscais, não aplicáveis, por regra, aos contribuintes nacionais daqueles Estados”.
O referido Projeto de Resolução manifesta, ainda, de preocupação com “empresas de fachada”, aplaudindo a iniciativa da Comissão Europeia com a proposta de Diretiva Unshell (de que falamos adiante).
Neste sentido, o Projeto de Resolução apela aos governos dos Estados-membros para inverterem esta (por si designada) tendência e, bem assim, para procederem à adoção de impostos sobre o património pessoal (wealth taxes), adaptados para incidirem sobre a propriedade e a sucessão da propriedade de ativos financeiros e de bens de luxo.
Assim, o Projeto de Resolução, se aprovado, constituirá uma iniciativa, política, para pressionar (i) na introdução de wealth taxes de modo mais transversal na União Europeia e (ii) a contestação junto dos Governos de regimes como o nosso dos Residentes Não Habituais.
3.
A posição projetada do Parlamento Europeu não parece, porém, observar nem respeitar as naturais diferenças e a autonomia fiscal de cada Estado-Membro, nem as necessidades de alguns Estados-Membros se diferenciarem positivamente, pela via fiscal, para uma saudável promoção e atração de investimento, vital para o seu desenvolvimento, melhorando o level playing field entre os Estados-Membros da União Europeia. Assim, o Projeto de Resolução, cujo peso é, acima de tudo, político, levanta interessantes questões de política fiscal e de respeito da soberania fiscal de cada Estado-Membro, o que é crucial para países mais pequenos e débeis como Portugal.
A DIRETIVA UNSHELL
4.
No âmbito da Diretiva do Conselho COM(2021)565 final (Diretiva Unshell) – que estabelece regras para prevenir a utilização abusiva de empresas de fachada para fins fiscais – o Parlamento Europeu votou favoravelmente a sua redação, ainda que prevendo alterações relevantes, estabelecendo, ainda, critérios atualizados para determinar empresas de fachada utilizadas para a elisão e a evasão fiscais, as respetivas sanções e, bem assim, os requisitos das obrigações de reporte que se pretendem concretizar.
Com mais detalhe sobre a Proposta de Diretiva, veja-se a nossa Newsletter n.º 06/23.
5.
Entende-se que a adoção de medidas que permitam mitigar a intermediação indevida de empresas que não exerçam qualquer atividade económica efetiva, serão medidas objeto de aprovação popular, sendo igualmente de aplaudir na perspetiva do reforço da confiança que os cidadãos, em geral, devem ter nos sistemas fiscais europeus.
Porém, o resultado da Proposta de Diretiva em apreço poder pecar por insuficiente, ou, até, por ser injusto, ao pretender impor novas obrigações, apertadas, aos agentes económicos, aumentando os já elevados custos de contexto dos mesmos e em face de jurisdições da União Europeia.
De facto, a proposta de Diretiva parece onerar e prejudicar o normal desenvolvimento da atividade económica no âmbito da União Europeia, além de parecer pretender modelar a forma de exercício destas atividades, sob o escudo das penalidades fiscais, obrigando os sujeitos passivos a esforços de justificação do seu negócio – o que poderá, inclusivamente, obrigar à partilha de modelos e segredos de negócio para justificar as razões económicas válidas para esse determinado modelo.
6.
Por outro lado, tais obrigações de reporte são suportadas por normas que aludem a conceitos indeterminados, o que irá com certeza gerar inquietude nos operadores económicos, além de incerteza na sua aplicação, o que, em temas sensíveis como a explicação de determinado modelo de negócio para demonstrar que o mesmo não existe por motivos fiscais, nos parece contrário ao princípio da segurança jurídica e da reserva da vida privada.
7.
Por fim, parece-nos que a Proposta de Diretiva coloca, ainda, demasiado poder junto das Administrações fiscais para, de modo discricionário, avaliarem, positiva ou negativamente, quando devido, estes modelos de negócio.
Após recentes alterações às Diretivas Anti-Elisão Fiscal e Cooperação Administrativa em matéria fiscal, a proposta de Diretiva Unshell parece algo precipitada, uma vez que, antes de razoavelmente conhecidos os efeitos das referidas alterações, se pretende avançar em medidas com impacto na globalidade do tecido económico e empresarial europeu, questionando-se a sua proporcionalidade em face dos fins pretendidos: a luta contra a fraude e evasão fiscal. E poderá, ainda, motivar uma “fuga de capital” para outras jurisdições, não sendo, assim, a medida mais eficaz de resolução dos problemas identificados, numa perspetiva internacional.
8.
Assim, dever-se-á acompanhar os desenvolvimentos que ocorrerão no âmbito da sua discussão e eventual aprovação pelo Conselho Europeu, nomeadamente no que respeita à data da entrada em vigor e nas medidas que sejam aprovadas para minimizar o impacto no tecido empresarial de pequenas e médias empresas.
DA PROPOSTA DE DAC 8
9.
A 8 de Dezembro de 2022, a Comissão publicou uma proposta legislativa de revisão da Diretiva 2011/16/UE do Conselho (DAC 8), na qual se preveem várias alterações relevantes.
A alteração principal proposta é a da introdução de um crypto asset reporting framework, baseado no proposto pela OCDE, prevendo um conjunto de regras de due dilligence e de comunicação para os prestadores de serviços/plataformas de criptoativos, nomeadamente de reporte de informação de operações com criptoativos, incluindo os seus utilizadores, além de normas de facilitação, neste âmbito, da troca de informações entre as autoridades fiscais dos Estados-Membros da União Europeia.
Após a AMLD5, que estabeleceu mecanismos de reporte destas transações no âmbito da legislação contra o branqueamento de capitais, e da aprovação do MiCA, regulamento que estabelece um quadro jurídico para os criptoativos, com regras e requisitos para os prestadores de serviços nesta área, bem como após a DAC7 (ver infra), que estabelece regras de reporte para plataformas digitais, a proposta de DAC8 fecha, assim, o círculo, ao prever, agora, também a troca de informações para efeitos fiscais no âmbito de transações com criptoativos.
Por último, salienta-se que o Conselho ECOFIN chegou a acordo, no dia 16 de maio de 2023, sobre a sua posição – orientação geral – acerca desta Proposta de Diretiva.
10.
A proposta de DAC8 pretende, também, alargar o âmbito de aplicação das normas de trocas de informação a quanto a advanced cross-border rulings que digam respeito a high net worth individuals (sendo estes entendidos como as pessoas que detenham um mínimo de um milhão de euros de património financeiro, de ativos investidos ou sob gestão, excluindo a residência pessoal).
Importará, assim, também aqui, acompanhar o processo legislativo atinente à aprovação desta proposta de Diretiva e, bem assim, a transposição que se seguirá para o direito nacional.
OS DESENVOLVIMENTOS DA DAC 7
11.
Num esforço para regulamentar as transações de bens e serviços através de plataformas digitais, o Conselho da União Europeia aprovou também a Diretiva 2021/514, de 22 de março de 2021 (DAC 7), que alterou a Diretiva 2011/16/EU, de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade.
O principal foco desta DAC 7 é, assim, o de aumentar a transparência e enfrentar os múltiplos desafios fiscais colocados pela economia de plataformas digitais, introduzindo novas regras de compliance e, bem assim, a troca automática obrigatória de informações a comunicar pelos operadores de plataformas aos Estados-membros.
12.
Considerando que a Diretiva impõe que as disposições legislativas, regulamentares e administrativas devem ser aplicadas pelos Estados-membros a partir de 1 de janeiro de 2023, foi aprovada em Conselho de Ministros, no dia 16 de fevereiro de 2023, a Proposta de Lei n.º 64/XV/1 para transposição da Diretiva (UE) 2021/514.
Para o efeito, a referida Proposta de Lei portuguesa sugere alterações ao Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), ao Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), e à quarta alteração do Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade.
Neste quadro, importará acompanhar a o processo legislativo atinente à transposição da Diretiva que, após aprovado na fase de generalidade, se encontra para votação na especialidade.
OS DESENVOLVIMENTOS DA DAC 6
13.
Como é sabido, a Diretiva 2018/822, de 25 de maio de 2018 (DAC 6), aprovou um novo paradigma no que respeita a troca de informações fiscais, com a introdução de obrigações de comunicação, às Administrações tributárias, de certos mecanismos transfronteiriços com impacto fiscal.
Estas obrigações de comunicação deverão ser cumpridas por quaisquer intermediários que intervenham nesse mecanismo, seja a título de conceção, comercialização, organização ou aplicação, salvo proteção de sigilo profissional, como sucede no caso de intermediários Advogados.
Neste último caso, o intermediário/Advogado, prima facie impedido de promover o reporte, deverá, ainda assim, notificar os restantes intermediários (por exemplo: consultores fiscais ou contabilistas) envolvidos de que não irá promover essa comunicação do mecanismo junto da Administração fiscal.
14.
Ora, no passado dia 8 de dezembro de 2022, foi proferido um importante Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no âmbito do Processo C-694/20, e que se pronunciou a respeito de Pedido de Reenvio Prejudicial apresentado pelo Tribunal Constitucional Belga.
Neste processo, foi analisada a conformidade da disposição da DAC 6 que prevê a referida obrigação de comunicação, pelo intermediário protegido por sigilo profissional, e aos demais intermediários, da situação de sigilo profissional.
15.
Neste âmbito, o TJUE entendeu que esta obrigação de comunicação condiciona os intermediários Advogados a prestarem informações, o que não é compatível com a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no que respeita a inviolabilidade da correspondência dos cidadãos e o segredo nas relações entre Cliente e Advogado.
O TJUE declarou ainda que a limitação aos direitos protegidos na Carta deverá ser adequada, necessária e proporcional à prossecução da finalidade subjacente, de combate à evasão fiscal e ao planeamento fiscal agressivo, entendendo que a referida divulgação, por um Advogado, nomeadamente sem o consentimento do Cliente, do seu conhecimento de determinado mecanismo que, porém, não poderá reportar por sigilo profissional, seria uma violação dos aludidos princípios que não é adequada, necessária ou proporcional aos referidos fins.
Em face do exposto, o TJUE decidiu que as disposições legais da DAC 6, que impõem ao Advogado, que atua como intermediário, de notificar sem demora qualquer outro intermediário que não seja seu Cliente das suas obrigações de comunicação, quando este é dispensado da obrigação de comunicação por motivos de sigilo profissional a que está sujeito, são inválidas.
16.
Parece-nos ser de aplaudir esta importante decisão do TJUE, por o Tribunal se assumir no seu papel de controlo de obrigações impostas por Diretiva europeia, defendendo os melhores interesses dos cidadãos.
No mesmo sentido, a conclusão do TJUE já nos pareceria resultar de imperativo lógico: se a DAC 6 reconhece a proteção por sigilo profissional, não seria admissível que o desconsidere no que respeita a comunicação a terceiros, ainda que também intermediários, da existência de uma relação entre Advogado e Cliente, ou de factos que são do conhecimento ao abrigo dessa relação, ao que acresce o facto desta comunicação parecer resultar de um pré-juízo do Advogado quanto à situação em apreço, como que coagindo os demais intervenientes na obrigação de a comunicar.
17.
Também será de acompanhar com expetativa o processo C-623/22, onde, em sede de pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Constitucional Belga, o TJUE irá analisar, entre outros, se a DAC 6 viola o princípio da legalidade em matéria penal, o princípio geral da segurança jurídica e o respeito pela vida privada, na medida em que recorre a conceitos indeterminados nas situações objeto das obrigações de comunicação, ou na medida em que a obrigação de apresentação de informações sobre os mecanismos implica uma ingerência no direito ao respeito pela vida privada dos intermediários e dos contribuintes relevantes.
CONCLUSÕES
18.
Neste contexto, é possível concluir que o combate ao planeamento fiscal agressivo e à evasão fiscal tem estado na ordem do dia das instituições europeias, o que é de aplaudir, na mesma medida em que se impõe também, por outro lado, alguma racionalidade nas decisões a tomar, no sentido da manutenção da liberdade de autonomia privada, da reserva da vida privada, da segurança jurídica, do sigilo profissional e da previsibilidade das normas fiscais, além de uma existência, saudável e respirável, de qualquer empresa na União Europeia.
Continuaremos, assim, no futuro próximo, a acompanhar os mais recentes desenvolvimentos nesta sede.
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Lisboa, 16 de maio de 2023
Rogério Fernandes Ferreira
Marta Machado de Almeida
Álvaro Silveira de Meneses
Miriam Campos Dionísio
João de Freitas Jacob
(Tax Advisory Team)