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Proposta de Diretiva “Unshell”: desenvolvimentos recentes

24 January 2023
Proposta de Diretiva “Unshell”: desenvolvimentos recentes
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Proposta de Diretiva “Unshell”: desenvolvimentos recentes

24 January 2023

SUMÁRIO

No âmbito da Diretiva do Conselho COM(2021)565 final (Diretiva Unshell), que estabelece regras para prevenir a utilização abusiva de empresas de fachada para fins fiscais, o Parlamento Europeu votou favoravelmente a sua redação, ainda que prevendo alterações relevantes, estabelecendo critérios atualizados para determinar empresas de fachada utilizadas para a elisão e a evasão fiscais, as respetivas sanções daí decorrentes e, bem assim, os requisitos da obrigação de reporte.

INTRODUÇÃO

1. 
Em 18 de maio de 2021, a Comissão Europeia adotou a Comunicação intitulada “Uma tributação das empresas para o século XXI”, com o objetivo de “promover um sistema de tributação das empresas sólido, eficiente e justo na União Europeia”.

Concretizando essa Comunicação, a Comissão Europeia apresentou várias propostas legislativas, onde se inclui a Proposta de Diretiva do Conselho COM(2021) 565, de 22 de dezembro de 2021, que estabelece regras para prevenir a utilização abusiva de entidades de fachada para fins fiscais e que altera a Diretiva 2011/16/UE — a chamada proposta de Diretiva “Unshell”.

A proposta de Diretiva Unshell visa, assim, estabelecer um conjunto de regras contra o que a Comissão Europeia apelida de “práticas de elisão e evasão fiscais, que afetam diretamente o funcionamento do mercado interno”. Estas regras aplicar-se-ão, em regra, a todas as empresas consideradas elegíveis para receber um certificado de residência fiscal num Estado-Membro.

 2. 
A proposta de Diretiva Unshell esteve em consulta, para efeitos de primeira leitura, no Parlamento Europeu, que publicou, muito recentemente, no dia 17 de janeiro de 2023, as suas conclusões e Resolução (n.º P9_TA(2023)0004, na qual se preveem alterações à proposta inicialmente apresentada pela Comissão Europeia.

Competirá, agora, ao Conselho Europeu pronunciar-se, em primeira leitura, sobre se aceita a posição do Parlamento Europeu, ou se tem outras alterações de sua iniciativa que motivem uma segunda leitura do Parlamento Europeu. Não existe um prazo para a primeira leitura do Conselho Europeu, sem prejuízo de o Conselho Europeu ter já iniciado os trabalhos, ao nível do ECOFIN.

ENQUADRAMENTO DA PROPOSTAS DE DIRETIVA 

3.
A proposta de Diretiva Unshell tem como objetivo estabelecer indicadores de substância mínima para as empresas nos Estados-Membros da União Europeia, bem como um novo paradigma da comunicação entre os Estados-Membros, relativo à substância das sociedades residentes em cada Estado-Membro.

Visando ter efetiva implementação, a proposta de Diretiva Unshell define, ainda, consequências fiscais quanto às entidades1 que não cumpram aqueles indicadores, além de prever, ainda, um quadro punitivo, ao nível contraordenacional, caso uma entidade não cumpra as obrigações previstas na Diretiva, ou cumpra com recurso a declarações falsas.

ÂMBITO DE APLICAÇÃO

4.
A proposta de Diretiva Unshell tem um âmbito de aplicação bastante lato, na medida em que são visadas, prima facie, todas as entidades[1] consideradas residentes fiscais, e elegíveis para receber um certificado de residência fiscal, num Estado-Membro.

Porém, a proposta de Diretiva em apreço prevê quatro filtros que, na prática, reduzem o escopo de aplicação efetiva, no sentido de procurar alinhar e balancear os interesses em jogo, não impondo obrigações excessivas a entidades que a Comissão Europeia terá entendido serem de baixo risco, sendo:

5.
Um desses filtros trata-se de uma exclusão (carve-out) de determinados tipos de entidades, previstas na proposta de Diretiva, da obrigação anual de verificação e declaração dos indicadores mínimos de substância — sendo, assim, a consideração, pela Comissão Europeia, que tais entidades não têm os comportamentos e consequências que se visa prevenir, sendo consideradas de baixo risco;

A obrigação de reporte prevista na Diretiva está também sujeita a uma validação prévia, por parte das entidades em escopo (e em regime de self-assessment), do preenchimento de três condições (“gateways”). Se estes gateways não forem cumulativamente verificados, a essa entidade não terá que cumprir a obrigação de reporte. Os gateways são referentes: (i) ao tipo de rendimentos obtidos pela entidade; (ii) à atividade transfronteiriça dessa entidade; e (iii) um elemento referente ao outsourcing das funções significativas.

Porém, é, ainda, possibilitado que uma entidade que preencha cumulativamente os gateways esteja isenta da obrigação de reporte, caso, por via de requerimento, demonstre que a existência da entidade não reduz a dívida fiscal do(s) seu(s) beneficiário(s) efetivo(s) ou do seu grupo.

Por fim, existe a possibilidade de uma entidade que, por não atingir os indicadores mínimos de substância, se presume que não tem substância mínima para efeitos fiscais, ilidir esta presunção (obstando, assim, às consequências fiscais previstas na proposta de Diretiva), caso, brevitatis causae, a entidade consiga demonstrar e provar que a sua existência é motivada por razões comerciais válidas. Porém, este requerimento é de difícil prova, sendo necessário também demonstrar que a tomada de decisões relevantes é localizada no Estado-Membro da entidade, além de ser necessário, ainda, apresentar informação detalhada sobre os perfis dos funcionários.

COMPLIANCE ANUAL E A OBRIGAÇÃO DE REPORTE

6.
A proposta de Diretiva Unshell prevê que os Estados-Membros possam, como referido, passar a exigir uma nova obrigação de reporte às entidades em escopo que satisfaçam, cumulativamente, os três gateways.

Assim, quanto às entidades em escopo, sobressai uma obrigação de compliance anual de verificação, ou não, dos três referidos gateways, que culminam na consideração, ou não, dessa entidade como “em risco” de ser considerada uma entidade de fachada.

E, caso os tais gateways estejam verificados, ou seja, caso a entidade seja considerada em risco de ser uma entidade de fachada, fica sujeita (caso não esteja isenta) a uma obrigação de reporte (e de prova) anual de indicadores de substância , além de se prever igualmente troca de informações entre os Estados-Membros relativamente à informação reportada.

7.
Não obstante o exposto, e uma vez cumpridos os referidos critérios, a entidade fica sujeita à obrigação de reporte (e de prova), na respetiva declaração fiscal anual, de um conjunto de indicadores mínimos de substância para efeitos fiscais, tais como (i) a entidade dispor de instalações próprias no Estado-Membro ou de instalações para sua utilização exclusiva, (ii) a entidade ter pelo menos uma conta bancária própria e ativa na União Europeia, (iii) entre outros indicadores relacionados com os administradores da empresa e/ou os seus funcionários.

E, caso falhe no reporte de algum desses indicadores, ou caso não apresente a respetiva prova adequada, presume-se que essa entidade não tem substância mínima para o exercício fiscal em causa – sendo que, como referido acima, existe a hipótese de esta presunção ser ilidida, nos termos previstos na proposta de Diretiva em causa.

AS CONSEQUÊNCIAS FISCAIS

8.
Uma entidade que, por decorrência das normas da proposta de Diretiva, seja presumida como não tendo substância mínima para o exercício fiscal em causa, verá serem-lhe aplicáveis consequências fiscais, notando-se que as mesmas poderão ser pesadas, nomeadamente:

  • a não atribuição de certificado de residência fiscal (ou a emissão de certificado com menções especiais), não beneficiando, assim, de normas previstas em Convenções para evitar a Dupla Tributação ou em Diretivas Europeias como a Parent-Subsidiary Directiveou a Interest and Royalties Directive; e
  • a aplicação de um mecanismo de transparência fiscal, por via da imputação dos rendimentos obtidos por essa entidade ao seu “acionista”[2] (podendo existir, em alguns casos, a possibilidade de dedução, no Estado-Membro de residência do acionista/beneficiário efetivo, do imposto pago no Estado-Membro de “residência” da entidade); e
  • o Estado-Membro onde se localizem os ativos dessa entidade, deverá efetivamente tributar esses ativos, bem como o rendimento deles resultante, de acordo com o seu direito nacional, como se esses rendimentos fossem obtidos diretamente pelo acionista, nomeadamente no que respeita a retenção na fonte, sem prejuízo de eventual Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada com o Estado do acionista.

A TROCA DE INFORMAÇÕES

9.
A proposta de Diretiva Unshell prevê alterações à Diretiva 2011/16/UE, relativa à Cooperação Administrativa em matéria fiscal, prevendo novas obrigações de comunicação entre as Administrações tributárias dos Estados-Membros, nomeadamente caso tenham conhecimento, por via da declaração da entidade ou por via de procedimento de inspeção, que uma entidade sua administrada não cumpre indicadores mínimos de substância fiscal (ou seja, quando a obrigação anual de reporte, por parte de uma entidade, após verificados os gateways, não seja suficiente ou não esteja suficientemente provada).

Também é objeto de troca de informações a certificação de que uma entidade está isenta da obrigação de reporte, ou que ilidiu a presunção de não ter substância mínima para efeitos fiscais.

CONSEQUÊNCIAS CONTRAORDENACIONAIS 

10.
A Proposta de Diretiva prevê, ainda, um quadro sancionatório aplicável à violação das disposições da diretiva, nomeadamente caso uma entidade não cumpra, se obrigada, a obrigação de reporte de substância, ou caso cumpra essa obrigação por via de declarações falsas.

Na proposta da Comissão Europeia, prevê-se que a coima possa ser de, pelo menos, 5% do volume de negócios da entidade no exercício fiscal em causa.

as alterações propostas pelo Parlamento Europeu, em primeira leitura

11.
Conforme referido, foi recentemente aprovado, no Parlamento Europeu, uma resolução na qual se aprova a proposta da Comissão Europeia, com alterações, mais solicitando, em linha com o procedimento legislativo ordinário ao nível da União Europeia, que o Conselho Europeu notifique o Parlamento Europeu caso se afaste do texto como aprovado, com alterações, pelo Parlamento Europeu, ou caso pretenda alterar substancialmente a proposta da Comissão Europeia.

O Parlamento Europeu introduziu bastantes alterações relevantes, sendo que na presente Newsletter se selecionaram as que nos parecem mais relevantes.

12.
Desde logo, nos considerandos, destacamos as alterações no sentido da clarificação do seguinte:

  • poderão existir razões válidas para a existência de uma entidade com substância mínima para efeitos fiscais, pelo que será importante salvaguardar o impacto desta diretiva no exercício da atividade das pequenas e médias empresas;
  • as obrigações previstas na Diretiva deverão ser proporcionais e efetivas, porém também preservando a competitividade do tecido empresarial da União Europeia;
  • dever-se-á ter em conta a crescente adesão ao remote working, onde entidades perfeitamente legítimas tomam uma decisão de gestão de reduzir escritórios físicos ou, até, de não terem escritórios exclusivos;
  • a Comissão Europeia e os Estados-Membros deverão garantir que as consequências fiscais previstas na Diretiva estão articuladas de modo consistente com as Convenções para evitar a Dupla Tributação celebradas entre Estados-Membros e Estados terceiros.

13.
No que respeita às disposições da proposta de Diretiva Unshell, notamos que o Parlamento Europeu:

  • aumentou o escopo de aplicação dos gateways acima referidos, aumentando, na mesma medida, o alcançe da Diretiva,ao reduzir a percentagem de rendimento relevante, ou a percentagem de ativos relevantes no balanço da entidade, que têm aplicação na verificação no cumprimento do gateway respetivo;
  • propõe um novo aumento do alcance da Diretiva, ao reduzir as carve-out provisions potencialmente aplicáveis, prevendo-se que, agora, empresas que contem com, pelo menos, cinco funcionários a tempo inteiro, já não sejam consideradas excluídas das demais obrigações da Diretiva;

14.
No âmbito dos indicadores de substância mínima, o Parlamento Europeu propõe que:

  • uma entidade possa ter instalações de uso partilhado com outras entidades do mesmo grupo;
  • relativamente aos administradores da entidade, deixe de ser exigida a sua qualificação, apenas a autorização, para tomar decisões em relação às atividades geradoras de rendimentos. Esta autorização não terá de ser utilizada de forma ativa e independente, prevendo-se agora também a possibilidade de o administrador sê-lo também de outras entidades não associadas, ao contrário do anteriormente previsto na proposta de Diretiva;
  • relativamente aos trabalhadores da entidade, uma alteração substancial, ao deixar-se de exigir que estes sejam residentes, para efeitos fiscais, no mesmo Estado-Membro da entidade. Ao invés, dever-se-á atender à residencia habitual dos trabalhadores, em linha com o disposto no Regulamento Roma I (ou seja, atração da residência habitual para o local do seu “estabelecimento principal” à data da celebração do contrato); e
  • que as entidades apresentem informação relativa à visão geral da sua estrutura, incluindo as suas entidades associadas, bem como o racional da sua estrutura, informação a ser prestada por via de preenchimento de uma declaração standardizada.

Portanto, também se prevê a possibilidade de deferimento tácito dos requerimentos de ilisão de presunção, ou de isenção, passados 8 ou 9 meses da sua apresentação, respetivamente.

15.
Relativamente às consequências fiscais, foi proposta a eliminação da disposição que permite a emissão de um certificado com menções especiais, substituindo-se o mesmo pela não emissão, de todo, de certificado de residência fiscal, acompanhado de uma declaração da entidade relevante desse Estado-Membro justificando a recusa do certificado de residência fiscal e, bem assim, indicando que essa entidade não tem direito aos benefícios das convenções para evitar a dupla tributação celebradas por esse Estado-Membro, além de outros benefícios fiscais resultantes de Diretivas europeias.

16.
No que toca às sanções potencialmente aplicáveis, o Parlamento Europeu propõe a alteração da taxa de 5% aplicável ao volume de negócios, para uma taxa de, pelo menos, 2% das receitas das entidades no exercício fiscal em causa, prevendo, ainda, a existência de uma sanção, em caso de inexistência/reduzidas de receitas nesse exercício fiscal, aplicando-se aquela taxa mínima sobre o total de bens detidos pelas empresas.

CONCLUSÃO

17.
Numa altura de grande atividade e discussão política acerca da fiscalidade internacional, a adoção de medidas que permitam mitigar a intermediação indevida de empresas que não exerçam qualquer atividade económica efetiva, serão medidas objeto de aprovação popular, sendo entendidas como alinhadas e capazes de gerar consensos entre os Estados-Membros, em prol de um sistema tributário mais justo e transparente.

Porém, tal resultado sempre pecará por insuficiente, ou, injusto, caso se imponham obrigações desmesuradas aos agentes económicos, onerando e prejudicando o normal desenvolvimento da sua atividade, sendo efetivos entraves à livre iniciativa económica.

Por causa de pecadores, carregam os justos a cruz anual da compliance da verificação, ou não, dos gateways de “acesso” à obrigação de reporte, com todos os inerentes custos que essa verificação implicará.

Ou, por outro lado, a proposta de Diretiva promoverá o recurso a entidades que estejam excluídas da aplicação da Diretiva — ainda que estas sejam usadas por motivos de elisão fiscal.

Assim, num contexto de existência das Diretivas Anti-Elisão Fiscal e de Cooperação Administrativa em matéria fiscal, e onde, ainda, não se pode efetuar um exercício efetivo de averiguação da sua real eficácia, nas redações respetivas mais atuais, a proposta de Diretiva Unshell parece algo precipitada, atendendo ao impacto que esta terá, certamente, no tecido empresarial europeu, e na concorrência mundial das empresas europeias.

18.

O Parlamento Europeu abordou, e bem, que deverão ser salvaguardadas as pequenas e médias empresas, bem como muitas outras situações perfeitamente válidas. É, porém, pena que se mantenha a tónica dos pecadores, obrigando a grande (e talvez desproporcionada) partilha de informação de negócio por parte das entidades europeias, entendendo-se, por isso, que a Proposta deverá ter alterações no sentido de se promover alguma proporcionalidade em face de todos os interesses que estão em jogo.

Em face do exposto, e caso seja adotada, a Diretiva Unshell deverá ser transposta pelos Estados-Membros e entrar em vigor a partir de 1 de janeiro de 2024.

Lisboa, 24 de janeiro de 2023

Rogério M. Fernandes Ferreira
Marta Machado de Almeida
Álvaro Silveira de Meneses
Miriam Campos Dionísio
João de Freitas Jacob
Joana Fidalgo Barreiro

(Tax Advisory Team)



[1] A versão portuguesa da proposta de Diretiva menciona “empresa”, definindo estas como qualquer entidade que exerça uma atividade económica, independentemente da sua forma jurídica, que seja residente fiscal num Estado-membro. Todavia, atendendo à conotação específica da palavra empresa, bem como ao facto de tal conceito não ser, em regra, utilizado no âmbito do direito fiscal nacional, parece-nos ser preferível a expressão entidade, por ser tradução mais adequada da expressão inglesa undertaking.

[2] O conceito de “acionistas da empresa” encontra-se definido na proposta de Diretiva Unshell como sendo as pessoas ou entidades que detenham diretamente ações, interesses, títulos, participações, direitos de membro, direito a benefícios ou quaisquer direitos equivalentes na empresa e, no caso de participações indiretas, as pessoas ou entidades que detenham interesses na empresa através de uma empresa ou de uma cadeia de empresas, das quais nenhuma satisfaça os indicadores de substância mínima (…). Assim, na presente Newsletter dever-se-á ler a expressão acionista na aceção da definição prevista na proposta de Diretiva Unshell, sem prejuízo de o uso dessa expressão poder não ser tecnicamente exato, na situação em causa, se vista à luz do direito societário ou demais direito aplicável.

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