Recentemente, o Tribunal Constitucional veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas que definiam a incidência e a taxa a aplicar aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas, por violação da reserva legislativa que pertence à Assembleia da República.
ENQUADRAMENTO
Nos últimos anos, o Tribunal Constitucional tem consolidado uma linha jurisprudencial que reconhece a inconstitucionalidade das normas previstas na Portaria que aprova as taxas devidas ao ICP-ANACOM, entre os quais pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (concretamente, as constantes dos n.º 1 e n.º 2 do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria n.º 296-A/2013, de 2 de outubro), as quais determinam a incidência e a taxa aplicável aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas no “escalão 2”.
Com efeito, e perante a controvérsia gerada em torno desta temática, o Ministério Público requereu, recentemente, a fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade dessas disposições, com vista, precisamente, a assegurar a sua conformidade com os princípios e normas consagrados na Constituição.
O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
No Acórdão n.º 779/2024, de 29 de outubro de 2024, o Tribunal Constitucional veio apreciar a constitucionalidade das taxas cobradas aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas, particularmente no que diz respeito à incidência e à taxa aplicável ao “escalão 2”, previstas na referida Portaria.
Em primeiro lugar, entendeu o Tribunal que a natureza do tributo se tratava de uma verdadeira contribuição financeira, em conformidade com a jurisprudência já sustentada no Acórdão n.º 429/2023, de 4 de julho de 2023. Segundo este entendimento, considera-se razoável que o ónus de suportar esta contribuição recaia sobre os fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas, dado que estes operadores, pelo exercício da sua atividade económica, contribuem para aumentar os custos que o Estado suporta na regulação e supervisão do mercado. Além disso, presume-se que estes fornecedores retiram um benefício, ainda que indireto, da atuação regular da ANACOM no cumprimento das funções legais que lhe são atribuídas.
Assim, e por se tratar de uma contribuição financeira dirigida a este setor específico, e como dita a nossa Constituição, o regime geral das contribuições financeiras encontra-se sujeito à reserva da competência legislativa da Assembleia da República. Este princípio exige que a definição dos aspetos essenciais destes tributos, como os critérios e os escalões de aplicação, sejam estabelecidos diretamente por Lei, pressupondo, assim, a existência de uma densificação mínima desses regimes tributários. Tal exigência visa garantir que as contribuições financeiras respeitem os princípios da transparência, da equidade e da previsibilidade, permitindo aos contribuintes compreenderem o âmbito das suas obrigações tributárias.
A VIOLAÇÃO DA RESERVA DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA
O Tribunal sublinhou que, embora a Lei das Comunicações Eletrónicas (LCE) – que serviu de base legal às normas aqui em causa – preveja a cobrança de taxas neste setor, os critérios essenciais para a sua determinação, como os escalões aplicáveis, as taxas concretas e a metodologia de cálculo, não foram suficientemente definidos e densificados no texto legal.
Como resultado, a regulamentação dessas matérias foi integralmente delegada ao Governo, através de Portaria, quando deveriam ter sido reguladas por Lei parlamentar ou, alternativamente, por Decreto-Lei do Governo devidamente autorizado para o efeito.
Conforme destacado pelo Tribunal Constitucional, a questão em causa não se limita apenas à violação da Constituição propriamente dita (cujo objetivo é o de delimitar o domínio reservado ao legislador parlamentar em matéria tributaria), mas a invasão, pelo poder administrativo, de um domínio que é reservado ao poder legislativo.
OS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
O Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas regulamentares criadas pelo Governo, na medida em que a incidência e a taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas enquadrados no “escalão 2” constituem um caráter excessivamente inovador, constituindo a ausência de densidade normativa uma violação do princípio constitucional que atribui à Assembleia da República a reserva de função legislativa em matéria tributária.
Assim, com a declaração de inconstitucionalidade, os efeitos produzidos por essas normas serão anulados retroativamente, desde a sua entrada em vigor.
Embora o Governo, através do Primeiro-Ministro, haja solicitado ao Tribunal que os efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade fossem limitados (com fundamento no argumento de que essa retroatividade poderia afetar a segurança jurídica e o equilíbrio das contas públicas), o Tribunal Constitucional rejeitou este pedido e entendeu que, em casos como este, onde a violação da reserva de função legislativa é evidente, os efeitos retroativos são essenciais para garantir a efetividade das normas constitucionais e corrigir a constitucionalidade violada, ainda que possa gerar repercussões económicas.
CONCLUSÕES
O mais recente Acórdão do Tribunal Constitucional vem, assim, reafirmar, de forma clara e inequívoca, a importância da reserva de função legislativa na criação de tributos.
Apesar da LCE ter delegado competências regulamentares ao Governo, a mesma parece não ter logrado oferecer uma densificação mínima dos elementos essenciais do tributo – como os critérios de incidência e as taxas aplicáveis. Com isso, o Governo não só ultrapassou os limites da sua competência, como inovou em matéria que, pela sua natureza, deveria ser regulada por Lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei autorizado.
Ainda que caiba ao legislador parlamentar a criação de contribuições financeiras individualmente consideradas, ao não constar da LCE uma densificação mínima dos elementos definidores, não se pode afirmar que o legislador a tenha, efetivamente, criado, mas antes deixado toda essa tarefa para o plano regulamentar.
A decisão vem, portanto, reforçar a centralidade da Constituição como garante dos limites ao poder normativo do Estado, evidenciando que a legalidade deve prevalecer mesmo perante as potenciais implicações económicas que possam resultar de uma declaração de inconstitucionalidade com efeitos retroativos. Trata-se, pois, de uma afirmação decisiva do papel do Tribunal Constitucional na proteção da segurança jurídica e na preservação da separação de competências entre os diferentes poderes.
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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Bárbara Malheiro Ferreira
Maria Antónia Silva
Marta Arnaut Pombeiro
Marta Monteiro Moreira
Raquel Tomé Castelo