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Súmula de Jurisprudência do Tribunal de Contas (3º Trimestre de 2024)

23 October 2024
Súmula de Jurisprudência do Tribunal de Contas (3º Trimestre de 2024)
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Súmula de Jurisprudência do Tribunal de Contas (3º Trimestre de 2024)

23 October 2024

Pretende-se, com a presente informação, apresentar uma síntese dos principais Acórdãos proferidos pelo Tribunal de Contas – à semelhança do que fazemos em relação às decisões do Centro de Arbitragem Administrativa e, também, do Tribunal de Justiça da União Europeia, descrevendo os factos, a apreciação do Tribunal, a respetiva decisão e analisando, ainda, qual o impacto que a mesma pode ter na determinação das condutas a adotar pela Administração Pública.
Mantêm-se as nossas informações periódicas, também em matéria de Finanças Públicas, Direito Financeiro e Orçamental e de Contabilidade Pública.

Mantêm-se, assim, as nossas informações periódicas, também em matéria de Finanças Públicas, Direito Financeiro e Orçamental e de Contabilidade Pública.

N.º DO ACÓRDÃO: 23/2024
RELATOR: Conselheiro Paulo Dá Mesquita
DATA: 12 de junho de 2024
ASSUNTO: Recurso ordinário relativo a exclusão de responsabilidade de infrações financeiras sancionatórias em razão a formas vinculadas

ENQUADRAMENTO

Em causa no presente processo está a decisão de condenação da conduta de um Presidente de Câmara (“Demandado”) enquanto infração financeira sancionatória, a qual envolveu a aquisição de combustíveis rodoviários e a celebração de contratos de seguro nos anos de 2017 a 2019, com valores globais de € 388.345,19 e € 318.842,13, respetivamente. Foi apurado que essas aquisições foram feitas sem seguir os procedimentos previstos no regime de contratação pública e sem a devida autorização prévia para essas despesas. Além disso, o Demandado não tomou medidas efetivas para esclarecer ou confirmar a legalidade dos procedimentos em questão, mesmo após ser confrontado com uma auditoria que lhe imputava responsabilidades financeiras. A auditoria revelou que as práticas irregulares só foram interrompidas após a intervenção de uma entidade independente, e não por iniciativa do Demandado.

APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL

O Tribunal entende que os temas a aferir são a tipicidade, a imputação objetiva, o elemento subjetivo e o pedido subsidiário de revelação da responsabilidade e dispensa de multa.

Quanto à tipicidade, o Tribunal entendeu que existiram duas infrações porquanto os bens e as prestações de serviços a adquirir, combustíveis rodoviários e contratos de seguro, são bens/prestações que, pela natureza do seu objeto e entidades a fornecer/prestar, não são suscetíveis de serem adquiridos através de um único procedimento, conforme o Código dos Contratos Públicos (CCP).

Nessa medida, deveriam ter sido lançados dois procedimentos de contratação, um para a aquisição de combustíveis rodoviários e outro para a aquisição de serviços e, consequentemente, a inexistência de procedimento em cada uma daquelas aquisições, significa a inobservância das regras da contratação pública para cada uma delas e, nessa medida, não poderia deixar de se concluir estar-se perante duas infrações autónomas.

Aplicando-se o mesmo raciocínio é em relação à inobservância das regras financeiras sobre a cabimentação, autorização e pagamento da despesa pública relativa, por um lado à aquisição de combustíveis rodoviários e, por outro lado, conexa com a aquisição de serviços de seguros.

Assim, considerando o que Tribunal que sendo inquestionável que o Município de Nelas é de considerar como “entidade adjudicante” e “contraente publico” e que os combustíveis rodoviários e a prestação de serviços de seguros são bens/prestações suscetíveis de serem submetidos à concorrência, concluiu o Tribunal que para a formação dos contratos com vista à aquisição dos mesmos devia ter sido adotado um dos procedimentos previstos no CCP, a determinar em função dos critérios definidos neste último preceito, nomeadamente o valor do contrato. Pelo que, não tendo sido adotado nenhum desses procedimentos, como não foi, entende o Tribunal como certa a violação das regras da contratação publica e o preenchimento do pressuposto objetivo da infração, à luz da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC).

Acrescenta o Tribunal que em termos de tipicidade, as normas sobre infrações financeiras sancionatórias constantes da LOPTC podem ser qualificadas como normas sancionatórias primárias autónomas que partilham uma característica comum: carecem de ser complementadas por normas de conduta sobre deveres dos agentes sujeitos a esse regime sancionatório de Direito Público (normas sancionatórias secundárias), concluindo que “[p]lano em que se impõe concluir que a consumação do tipo de ilícito financeiro que a Sentença recorrida considerou preenchido não depende de um concreto dano, como, aliás, sucede com a generalidade das normas primárias relativas a infrações financeiras sancionatórias reportadas à violação de regras de conduta que devem ser cumpridas pelos contáveis e cuja violação determina por si só o preenchimento do tipo estabelecido na norma sancionatória principal.”.

Assim, determina o Tribunal que no caso em análise das normas sancionatórias primárias aplicáveis, a consumação ocorre com a violação dos deveres estabelecidos pelas normas sancionatórias secundárias sem que o tipo objetivo exija o preenchimento de qualquer outro elemento, nomeadamente, dano ou condição objetiva de punibilidade, pelo que, o incumprimento de qualquer um dos deveres indicados estabelecido nas normas sancionatórias secundárias implica o preenchimento dos tipos de perigo abstrato estabelecidos nas normas sancionatórias primárias sem dependência da verificação de um concreto dano ou condições objetivas de punibilidade.

Quanto à imputação objetiva do Demandado, enquanto atribuição do facto à esfera de controlo ou poder do agente tem como epicentro a atribuição de eventos típicos associada no caso de violação de deveres normativos também a critérios normativos sobre competências, exigindo que se atenda ao património conceptual de disciplinas jurídicas sobre outras tipologias de responsabilidade na interpretação sistemático-teleológica das normas sobre infrações financeiras, conforme a LOPTC, aplica-se, ainda, subsidiariamente o disposto no Código Penal (“CP”), nomeadamente, a regulação do facto punível como compreendendo também a omissão da ação adequada a evitar o resultado típico.

Haverá ainda que atender ao n.º 2 do artigo 61.° da LOPTC que estabelece: “[a] responsabilidade prevista no número anterior recai sobre os membros do Governo e os titulares dos órgãos executivos das autarquias locais, nos termos e condições fixadas para a responsabilidade civil e criminal nos n.°5 1 e 3 do artigo 36.° do Decreto n.º 22257, de 25 de fevereiro de 1933».

Sendo que este artigo prescreve que “[s]ão civil e criminalmente responsáveis por todos os atos que praticarem, ordenarem, autorizarem ou sancionarem, referentes a liquidação de receitas, cobranças, pagamentos, concessões, contratos ou quaisquer outros assuntos sempre que deles resulte ou possa resultar dano para o Estado:
1.° Os Ministros quando não tenham ouvido as estações competentes ou quando esclarecidos por estas em conformidade com as leis, hajam adotado resolução diferente;
[.. ]
3.° Os funcionários que nas suas informações para os Ministros não esclareçam os assuntos da sua competência em harmonia com a lei.”.

Por seu turno, o Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (“RFALEI”) refere que “[n]as autarquias locais, a responsabilidade financeira prevista no n.º 2 do artigo 61.° da LOPTC recai sobre os membros do órgão executivo quando estes não tenham ouvido os serviços competentes para informar ou, quando esclarecidos por estes em conformidade com as leis, hajam tomado decisão diferente.
2. A responsabilidade financeira prevista no número anterior recai sobre os trabalhadores ou agentes que, nas suas informações para o órgão executivo, seus membros ou dirigentes, não esclareçam os assuntos da sua competência de harmonia com a lei.”.

Deste modo, entendo o Tribunal que a interpretação da LOPTC exige a captação do sentido normativo de uma categoria jurídica do passado, estações competentes, no quadro conceptual, axiológico e regimental do atual aparelho burocrático público e em particular das autarquias locais.

Assim, da LOPTC em conjugação com o RFALEI e o com o Código do Procedimento Administrativo estabelece quanto a autarcas uma causa de exclusão da responsabilidade associada a uma forma vinculada relativa ao campo de intervenção de estações com competência procedimental não decisória fundada na audição e adoção de informação prestada por estações competentes.

Neste contexto, a interpretação atualista do conceito de estações competentes compreende entidades dotadas de habilitação legal ou regulamentar para intervirem na fase final do procedimento administrativo que precede a formação do ato decisório.

Relativamente à habilitação legal ou regulamentar para emissão de pronúncia sobre matéria objeto de decisão de um órgão competente, para efeitos de tratamento de diferentes categorias conceptuais estabelecidas pela teoria geral da infração impõe-se uma destrinça entre duas variantes de procedimentos decisórios consoante:

O titular da competência decisória é obrigado a solicitar a intervenção intercalar consultiva; e

O titular da competência decisória tem a faculdade solicitar pareceres internos e/ou externos, não estando sujeito a um comando normativo que lhe imponha receber um parecer ou informação prévios sobre a matéria da legalidade.

Com efeito, quando o parecer prévio é obrigatório a não audição da estação competente pode ter relevância ao nível do tipo por violação do dever de audição, se o parecer ou informação forem facultativos o exercício da competência própria sem consulta prévia de terceiros apresenta-se irrelevante no plano da tipicidade, mas pode operar ao nível da imputação objetiva.

Deste modo, conclui o Tribunal que as ações concretizadoras das violações de deveres legais apreciadas no caso em questão [i.e., as aquisições de combustíveis e celebração de contratos de seguros] integravam a competência própria do órgão singular titulado pelo Demandado sem carência de se socorrer de qualquer parecer prévio sobre a questão da legalidade dos procedimentos, pelo que. consequentemente, a mácula dos pagamentos autorizados pelo Demandado derivou de os mesmos terem origem na violação de deveres legais que integravam a sua competência própria, acrescentando que “(…) no caso sub judice nenhuma estação competente informou o Demandado que a conduta por ele levada a cabo era conforme a legalidade e, por outro Iado, o Demandado não consultou previamente qualquer estação competente para efeitos de informação sobre o dever jurídico no caso concreto, não existindo nenhum motivo juridicamente válido para não Ihe ser imputada objetivamente a responsabilidade financeira sancionatória.”.

No que tange ao elemento subjetivo, salienta o Tribunal que a responsabilidade por infração financeira sancionatória não apresenta no regime legal dimensão exclusivamente objetiva pois depende de que a ação ou omissão que integra o tipo de ilícito seja imputável a título de dolo ou negligência ao concreto agente.

Ora, o cargo de autarca compreende obrigações de defesa do interesse público e da legalidade voluntariamente assumidas ao aceitar o respetivo exercício, assunção que transporta exigências de um nível de empenho, estudo e conhecimento das normas acima do homem médio que não foi incumbido dessas funções, nomeadamente, em termos de defesa e vigilância ativas em prol do integral respeito de regras e princípios consagrados nos regimes legais sobre Finanças públicas e autarquias locais.

Desta giza, ao Demandado era exigível a tomada de precauções suficientes em todos os procedimentos constantes da factualidade provada para assegurar o respeito de princípios e regras legais aplicáveis em cada uma das situações em que intervinha diretamente ou em que operavam os serviços sob sua direção, concluindo, assim, o Tribunal que “(…) inexiste motivo para dissidir da decisão impugnada quanto à qualificação da conduta do Demandado como negligência inconsciente (artigo 15.°, alínea b), do CP ex yi artigo 67.°, n.° 4, da LOPTC) por violação dos concretos deveres objetivos de cuidado, relativos à obrigação funcional de assegurar a legalidade de procedimentos em causa em cada uma das situações subjacentes à infração porque veio a ser condenado.”.

Quanto aos pedidos subsidiários de relevação da responsabilidade e dispensa da multa, entende o Tribunal que “[n]ão pode haver lugar à relevação da responsabilidade ao abrigo do n.° 9 do artigo 65.° da LOPTC, na medida em que a mesma apenas pode ter lugar antes do processo jurisdicional de efetivação de responsabilidades financeiras. A infração praticada pelo Recorrente reportou-se a violação dos seus deveres funcionais nucleares de respeito da legalidade insuscetível de ser qualificada como situada no limiar de uma ‹quase ausência de culpa» pelo que, não pode ser enquadrada na categoria «culpa diminuta» prevista no n.º 8 do artigo 65.º da LOPTC como condição necessária para a dispensa de multa.”.

DECISÃO

Decide, assim, o Tribunal julgar improcedente o recurso “(…) mantendo a sua condenação por uma infração financeira sancionatória em uma multa de 25 UC.”.

IMPLICAÇÕES PRÁTICAS

Sendo objetivamente cometida uma infração financeira sancionatória, em razão de aquisições de bens e serviços sem seguir os procedimentos previstos no regime de contratação pública e sem a devida autorização prévia para essas despesas. Acrescido de uma conduta na qual o agente não tomou medidas efetivas para esclarecer ou confirmar a legalidade dos procedimentos em questão, mesmo após ser confrontado com uma auditoria que lhe imputava responsabilidades financeiras, quedando-se tal conduta por uma clara violação de obrigações de defesa do interesse público e da legalidade, consubstanciando uma violação de deveres funcionais nucleares, tal preenche clara e inequivocamente a tipicidade subjetiva do facto ilícito. Por fim, o Acórdão clarifica que o regime da relevação da responsabilidade apenas pode ter lugar antes do processo jurisdicional de efetivação de responsabilidades financeiras e não posteriormente, bem como no caso em concreto verificasse não se estar perante uma situação de culpa diminuta.

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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
José Pedro Barros
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Bárbara Malheiro Ferreira
Alice Ferraz de Andrade
Raquel Tomé Castelo

 

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