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CESE: contributo setorial ou auxílio de estado disfarçado? Uma discussão que continua a dividir os tribunais — e o setor

23 May 2025
CESE: contributo setorial ou auxílio de estado disfarçado? Uma discussão que continua a dividir os tribunais — e o setor
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CESE: contributo setorial ou auxílio de estado disfarçado? Uma discussão que continua a dividir os tribunais — e o setor

23 May 2025

Será que as receitas da CESE, ao serem canalizadas para cobrir o défice tarifário do setor elétrico, configuram um auxílio estatal ilegítimo, favorecendo umas empresas em detrimento de outras?

ENQUADRAMENTO

O presente Recurso judicial centra-se na Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), um tributo criado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, e aplicado a empresas do setor energético com o objetivo de financiar medidas relacionadas com a sustentabilidade do Sistema Elétrico Nacional e a redução do défice tarifário da eletricidade.

No âmbito do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 20 de fevereiro de 2025, as Recorrentes vieram contestar a legalidade e a constitucionalidade da CESE, argumentando, em semelhança ao que tem vindo a ocorrer noutros processos, que este tributo não é uma verdadeira contribuição financeira, mas sim um imposto disfarçado.

Segundo estas entidades, a CESE viola princípios fundamentais do ordenamento jurídico português, nomeadamente ao aplicar-se cumulativamente com o IRC, originando uma duplicação da carga fiscal sem fundamento material.

Acresce que, por incidir sobre os ativos e não sobre os lucros das empresas, não reflete a verdadeira capacidade contributiva nem o respeito pela tributação pelo lucro real, o que significa que empresas que tenham prejuízos continuam a ser tributadas. As Recorrentes sublinharam também que nem todas as entidades sujeitas à CESE beneficiam das medidas financiadas por esta, o que agrava a perceção de injustiça fiscal.

Por fim, foi levantada uma possível violação do Direito da União Europeia designadamente do artigo 107.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE): será que as receitas da CESE, ao serem canalizadas para cobrir o défice tarifário do setor elétrico, acabam por configurar um auxílio estatal ilegal, favorecendo certas empresas em detrimento de outras?

As Recorrentes alegaram que esta situação distorce a concorrência no mercado e pedem ao Tribunal que submeta a questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), para clarificação sobre a eventual compatibilidade da CESE com as regras europeias de concorrência e auxílios estatais.

COMO O TRIBUNAL VÊ A CESE: CONTRIBUIÇÃO, SIM. IMPOSTO, NÃO.

Recorrendo à jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, que anteriormente se tinha já pronunciado sobre a questão, o Tribunal Central Administrativo Sul veio rejeitar a tese das Recorrentes de que a CESE deveria ser considerada um imposto, sustentando que se trata, na verdade, de uma contribuição financeira.

No caso em questão, o Tribunal veio considerar que a receita da CESE não se destina a financiar despesas públicas indistintamente, mas antes a promover a sustentabilidade do setor energético — em particular, através do Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) –, o que reforça a sua natureza de contribuição especial e afasta a sua qualificação como imposto de aplicação geral.

Desde a sua introdução no ordenamento jurídico, em 2014, a CESE tem vindo a ser renovada anualmente, sendo objeto de sucessivas alterações legislativas. Apesar de sua vigência prolongada, o Tribunal entendeu que a qualificação de um tributo não pode ser determinada apenas pela sua duração ou pelo contexto financeiro do Estado, defendendo que a CESE não se converte automaticamente em imposto pelo simples facto de ter sido aplicada por vários anos.

A continuidade da CESE justifica-se, nesta perspetiva, pela persistência dos problemas setoriais que estiveram na origem da sua criação, especialmente a dívida tarifária que permaneceu significativa ao longo dos anos, e o que fez com que a contribuição continuasse a desempenhar um papel setorial e finalístico.

O Tribunal sublinhou ainda que a designação "extraordinária" não é, por si só, determinante para a sua qualificação jurídica, pois a natureza transitória ou permanente de um tributo não é um critério exclusivo para diferenciá-lo entre imposto e contribuição.

Também a alegação de desproporcionalidade da carga fiscal foi afastada, na medida em que o Tribunal considerou adequado o critério de incidência adotado pela CESE — baseado nos ativos fixos das empresas —entendendo que esses ativos não são vistos como patrimónios tributáveis, mas como indicadores objetivos da contribuição das empresas para a sustentabilidade do setor energético.

Como referido no Acórdão, o valor do investimento em ativos fixos “(…) será o indicador mais direto para avaliar a dimensão da atividade das entidades sujeitas a CESE, tendo em vista aferir a partir daí qual a medida de benefício que extrairão da atividade reguladora do FSSSE.”

Em suma, a CESE foi entendida como uma contribuição que reflete a capacidade das empresas de tirar proveito das políticas públicas no setor energético e que não se trata de um imposto sobre o património ou sobre o lucro das empresas.

DOS AUXÍLIOS ESTATAIS: A CESE PASSA NO TESTE EUROPEU?

O Tribunal concluiu que não houve violação do Direito Comunitário, afastando a tese das Recorrentes de que o regime da CESE configura um auxílio estatal ilegítimo.

Para que uma medida seja considerada auxílio de Estado ao abrigo do Direito da União Europeia, a mesma deve conceder uma vantagem seletiva a determinadas empresas ou setores, distorcendo a concorrência no mercado interno. No entanto, o Tribunal fundamentou que a CESE não preenche estes requisitos.

Ainda que parte da receita da CESE seja consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, esse facto, por si só, não permite qualificar o regime como uma forma de auxílio estatal, uma vez que a sua aplicação abrange de forma indistinta vários operadores do setor energético e não foi demonstrado que confere uma vantagem exclusiva a certos operadores económicos em detrimento de outros.

A jurisprudência do TJUE tem sido clara ao considerar que medidas fiscais de caráter geral, indistintamente aplicáveis, não se enquadram no conceito de auxílio de Estado, salvo se introduzirem uma discriminação injustificada entre operadores que se encontrem em situação comparável.

No caso em apreço, entendeu o Tribunal não ter ficado provado que o regime da CESE introduz esse efeito discriminatório ou é suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros.

Além disso, o Tribunal rejeitou o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, por considerar que não existiam dúvidas razoáveis quanto à conformidade do regime com o Direito Europeu e que a jurisprudência existente já oferecia um esclarecimento suficiente sobre a matéria.

Assim, mantendo a interpretação de que a CESE não preenche os requisitos para ser qualificada como auxílio estatal, o Tribunal confirmou a decisão recorrida e afastou as alegações de ilegalidade invocadas pelas Recorrentes.

Em face de tudo o exposto, o Tribunal Central Administrativo Sul negou provimento ao recurso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate no presente Acórdão vai além do comum questionamento da qualificação da CESE como uma contribuição ou imposto, ao expor questões mais profundas, que vêm envolver não apenas a legalidade e a constitucionalidade da CESE, mas também os efeitos que pode ter sobre a concorrência no mercado interno.

Embora o Tribunal tenha decidido que a CESE se trata de uma contribuição financeira e não de um imposto, é difícil ignorar as consequências que este tributo tem para as empresas do setor energético. A sua aplicação, com base nos ativos fixos e não nos lucros, levanta sérias preocupações sobre a verdadeira capacidade contributiva das empresas, particularmente num contexto em que muitas delas enfrentam prejuízos ou dificuldades financeiras.

Além do mais, o tratamento da CESE como um tributo de carácter extraordinário e temporário não elimina a sensação de que ela se prolonga indefinidamente, como uma medida permanente que mantém as empresas no setor elétrico numa situação de incerteza fiscal. A sua aplicação, em muitos casos, parece mais uma solução paliativa do que uma medida eficaz para resolver os problemas estruturais do setor energético.

Por outro lado, a questão levantada pelas Recorrentes sobre a possível configuração de um auxílio estatal ilegítimo, ao canalizar as receitas da CESE para cobrir o défice tarifário do setor elétrico, também não pode ser desconsiderada. O Tribunal rejeitou essa alegação, mas a dúvida permanece: será que um tributo como a CESE, que impacta seletivamente um setor específico, não distorce a concorrência e cria desequilíbrios no mercado?

Será que não é hora de repensar o modelo de financiamento do setor energético, de modo a garantir que as soluções propostas não se traduzam em uma carga excessiva para as empresas, sem, no entanto, parecerem estar a alcançar efetivamente os fins para os quais a CESE foi criada – a sustentabilidade e o equilíbrio do setor?

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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Bárbara Malheiro Ferreira
Maria Antónia Silva
Marta Arnaut Pombeiro
Marta Monteiro Moreira
Raquel Tomé Castelo

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